A caça de Michael Moore



A dica de hoje para quem curte um bom documentário trata-se do primeiro doc produzido pelo polêmico Michael Moore, que ficou mundialmente conhecido com The Big One, Fahrenheint 9/11 e Tiros em Columbine:

Roger & Me.

O trabalho narra os impactos gerados na sua cidade natal, Flint, estado de Michigan, EUA, pelo fechamento de uma das unidades da General Motors, empresa responsável por empregar mais da metade dos habitantes da pequena cidade e por promover seus anos de glória. O fechamento da montadora não se deu em razão de déficit financeiros, mas por uma decisão controversa do presidente da instituição a época, Roger Smith, de transferir filiais da empresa para países do terceiro mundo com mão de obra mais barata e, assim, aumentar nababescamente os já vultuosos lucros, pouco se importando com o grave problema social gerado nos municípios que se mantinham escorados essencialmente em torno da fábrica para gerar riqueza e estabilidade. 




Moore documenta o naufrágio célere do município de seus conterrâneos que passa a abrigar uma gigantesca massa de desempregados sem perspectivas de conseguir nova recolocação em uma cidade desprovida de recursos, infraestrutura, de comércio aquecido; órfã de seu maior bem: a montadora de carros.

Registra o despejo de centenas de moradores que já não podiam arcar com os aluguéis de seus imóveis, os trabalhos informais (inusitados e eticamente questionáveis, expondo o desespero degradante que as pessoas eram submetidas ante o colapso financeiro) de alguns moradores pela luta pela sobrevivência, o aumento da criminalidade e as soluções estapafúrdias e fracassadas dos dirigentes políticos no afã de reverter o declínio vertiginoso da cidade americana.

E principalmente: a busca de Michael Moore para colher um depoimento do presidente da montadora, e de seus representantes, a respeito da decisão tomada e das consequências desastrosas que incidiram sobre a sua terra natal.  




Quem teve a oportunidade de conferir os trabalhos de maior repercussão do diretor sabe que sua narrativa é marcada por comentários ácidos, ironia ferina e que não tem medo de se colocar diante das câmeras e virar um personagem dentro da história que conta, um protagonista.

Mas não é o caso dessa produção de estreia. A ironia e seu rosto frente à tela também estão presentes, mas o tom debochado é bem mais ameno, sutil (a começar pela fonte utilizada no título, que evoca Tom e Jerry), o que é ótimo no meu entender. Há certas situações que não necessitam de comentários, explicações, basta fazer uso apenas do principal recurso da sétima arte: a imagem.

É exatamente o que ele faz aqui.


Ele se limita a fazer as perguntas que devem ser feitas, as mais óbvias, depois de deixar o espectador devidamente ciente de todo o contexto que o cerca, instaurando momentos tragicômicos com os entrevistados, que se expõem ao ridículo ao proferir argumentações que fogem muito da realidade retratada.

Uma das cenas que acho bem exemplificativa é a do depoimento de uma das nobres senhoras da elite local que declara que o problema do desemprego que assola Flint é culpa dos próprios trabalhadores, que são preguiçosos, segundo ela, querem ganhar dinheiro com sombra e água fresca. Detalhe: ela faz essa declaração enquanto ajeita uma bola de golfe em vasto campo verdejante numa tarde ensolarada, se entretendo com as amigas também madamas.

A hipocrisia, a ganância e a total indiferença para com a responsabilidade social são escancaradas cruamente, sem a necessidade de frases de efeitos ou comentários jocosos porque o absurdo é autoevidente em Roger & Me, documentário que considero o melhor já produzido por Michael Moore.


Vale a pena conferir. 

RESENHA: O Lobo da Estepe: Hermann Hesse


O Lobo da Estepe, livro do escritor alemão nobelado Hermann Hesse (1877-1962), autor de outras obras célebres como Demian e Sidarta, é uma narrativa de dissecação de um tipo, em todos os ângulos possíveis, seja pelo olhar externo do coletivo que o cerca ou pelo exame minucioso da dinâmica do universo interno, psicológico, do ser em análise, no caso, Harry Haller (a semelhança com o nome do autor não é mero acaso, trata-se de uma espécie de alter ego, já que tem a mesma idade que Hesse quando iniciou a escrever esse volume, 50, aliás, a persona do autor está diluída em vários personagens) um brilhante intelectual recatado, socialmente inepto em razão de seu pudor excessivo desenvolvido por sua timidez homérica, que o faz crer que sua integridade moral está atrelada ao isolamento e ao consumo inveterado de Goethe e Mozart.

O livro é dividido em três partes sendo a primeira dedicada a narrar à chegada do protagonista em uma estada temporária em uma pensão sob o ponto de vista dos proprietários, em especial por parte do sobrinho da dona do imóvel.

A segunda parte leva o leitor a se familiarizar com esse universo sob a perspectiva de Haller e, claro, a conhecer pormenorizadamente sua substância interna, a sua visão de mudo, suas predileções, seus temores, desgostos, vontades e o porquê de cultivar certos hábitos. É também o trecho que vem a conhecer o manifesto do Lobo da Estepe, uma teorização com tom doutrinário sobre uma persona supliciada por um conflito interno na qual se divisa o Lobo, responsável por depreciar todas as tentativas de interação duradoura com o mundo externo no afã de persuadir seu lado humano de afastar-se da civilização, pois deseja satisfazer suas vontades de lobo, dentre elas, a de permanecer em solidão serena, e o Homem, que é tentado a estabelecer vínculos, em inserir-se na sociedade sem qualquer tipo de reserva. Manifesto que o impacta profundamente e desperta o desejo de conhecer os autores da publicação e de modificar o seu estilo de vida.



O terceiro ato debruça-se sobre o seu relacionamento com a jovem Hermínia que se propõe a ajudá-lo a se libertar de sua metade Lobo o forçando a se submeter por situações que lhe são muito custosas, mas que na verdade tratam-se de algo banal aos mais simples de espírito, corriqueiro, como dançar em um baile de máscaras, relacionar-se amorosamente com uma desconhecida. Nesse capítulo é convidado a conhecer uma casa de espetáculo singular orquestrada por um dos amigos de Hermínia, local onde passa por situações únicas.

Os primeiros 2/3 do livro é espetacular, genial, não é exagero. Como dito acima é um retrato riquíssimo de uma personalidade arguta tanto sob o prisma do meio social que o cerca, que vive em uma sintonia, um ritmo de vida, comum a todos, contrastando com o mundo a parte que o intelectual se prende, tanto sob a ótica do próprio que parece infiltrar-se na mente do leitor e emular o seu modo de pensar de tão preciso, minucioso, franco, despido de qualquer pudor a narração se mostra ao escaneá-lo por dentro.

Tenho a convicção de que quando uma fotografia de determinada pessoa consegue passar mais sobre ela ao expectador do que um depoimento, uma descrição, um texto significa que o escritor fracassou no seu trabalho. Tenha a certeza de que não há imagem no mundo capaz de dizer mais sobre o tipo em questão do que essa maravilha de Hermann Hesse.



Outro fator que impressiona é a linguagem empregada pelo autor, e nisso cabe prestar honraria a tradução da Bestbolso. É envolvente, cativante, prazerosa de ser lida e aliando a incrível clareza, objetividade de Hesse para tratar de assuntos por vezes intrincados, abstrusos, transmite uma sensação eufórica no leitor de estar consumindo, sem enfado, dezenas de páginas em uma cadeirada só sobre temáticas pouco difundidas, eruditas, raras; o fazendo se sentir especial, de que está aproveitando bem o seu tempo, que ao terminar a leitura, vai se levantar mais enriquecido.  

Somente com uma linguagem agradável seria possível manter a atenção do leitor sobre um enredo que versa por questões tão particulares, introspectivas, porque dá-se a impressão, durante a leitura, que na verdade o que se consome não é uma obra ficcional, mas um ensaio acadêmico, um imenso artigo de um douto em psicologia porque a descrição de ambientes e de aspectos físicos dos personagens são brevíssimos, enxutos, a narração se dedica quase que integralmente nas divagações, nos raciocínios de Harry Haller, as suas reações internas ante aos acontecimentos esporádicos. Sem um texto mavioso, perseverar na leitura seria tarefa hercúlea.

É o êxito de conseguir dá vida, captar a atenção do público para esses tipos de estórias de digestão árdua que fornece os indícios necessários para distinguir os excepcionais do restante. 


O ato final deixa um pouco a desejar, mas o grau de acerto nas duas primeiras partes é tão retumbante que torna a terceira perdoável (embora será considerada ao avaliar no Skoob, por exemplo).

Sem querer dá informações em excesso que possa prejudicar na apreciação da estória, Haller é apresentado a um ambiente fantástico que o leva a vivenciar situações inusitadas, extravagantes, aparentemente sem nexo, sem coerência com a realidade. É uma clara alusão ao psicodelismo delirante consequente do uso de substâncias estimulantes e viciosas, mas que são muito fora da curva, muito estranhas, que desperta inquietação, constante intriga, inquietamento que nunca é desfeito porque respostas não são dadas, a clareza de início dissipa-se e resta ao leitor o esforço solitário de tentar a partir de suas capacidades emoldurar um significado que dialogue com o que fora exposto até esse ato final; o que não seria grande problema se fosse um recurso narrativo casual, mas são várias ocasiões, ocorrências que se sucedem a outras e que necessitam desse esforço para o leitor sentir-se a par do que realmente ocorre. E isto tem o efeito de chatear porque de repente o amante das letras ver-se a margem do universo narrado, o que prejudica a imersão e faz parecer que o volume do texto é mais extenso do que realmente o é.

Se você já experimentou e aprovou Dostoievski, Clarice Lispector, Kafka (achei o estilo de linguagem bem semelhante com este), gosta de leituras de viés intimista, está atrás de uma obra literária que te acrescente algo ao seu término, O Lobo da Estepe é o que procura.