Normalmente a literatura nacional é associada aos grandes
trabalhos de proposta artisticamente ambiciosa, as que procuram dissecar a alma
de indivíduos ou o modo de pensar e agir de uma sociedade por meio de estofo
intelectual erigido durante o consumo de milhares de páginas, comumente
enveredando para a crítica social tornando-se centro de debates e ganhando
apreciação de documento histórico distinto e valioso.
A generosa oferta de bons escritores provindos do século XIX
e começo do XX, estabelecendo proficuidade e, conforme pôde se constatar com o
decorrer dos anos, apogeu no campo das letras, a alfabetização precária do povo
brasileiro que perdurou por séculos, e há quem diga que ainda perdura, restringindo
o gosto da leitura a elite abastada, que adorava se espelhar nos europeus,
tidos como sinônimo de sofisticação e prosperidade, consumindo e ventilando
seus engenhos literários requintados com a aspiração de provar-se
incontestavelmente seleta, e aos de intelecto irresistivelmente proeminente que,
estimulados pela sede insaciável por conhecimento, tão característico do tipo,
dotados de sensibilidade social ímpar e de ego, por vezes, inflado, desejoso de
externar capacidades cognitivas invejáveis, sentiam-se atraídos pela produção
cultural do velho mundo, influenciando o laboro de obras genuínas no molde dos
colonizadores; a instauração de uma cultura literária daí resultante, onde se
cristalizou que o único tipo de literatura a se exaltar e de merecer
significativa cobertura é a que trilha este caminho de reverberação atemporal;
o modelo educacional miserável desestimulando a formação de seres pensantes
aptos em proporcionar renovação em termos de relevâncias, ideias e linguagem no
campo artístico, ou simplesmente despertar o mínimo de interesse para
viabilizar comercialmente novas obras e autores, evitando o distanciamento
entre arte e público; a disputa comercial entre nações que previsivelmente
privilegia quem tem mais poder de fogo (e a expressão pode ser lida de várias
maneiras) para impor os seus produtos em detrimento da produção cultural local
são fatores que explicam, senão de todo, ao menos, em parte, a cristalização,
no imaginário do cidadão banal, da literatura brasileira a essas obras pesadas,
antigas e sisudas e que viverá, in
perpetuum, carente de novas referências que imprima mais cores e vigor ao
seu panteão.
A consequência mais
óbvia desse panorama são as tentativas fugazes de replicar o modelo consagrado
e estagnado, ocasionalmente bem sucedidos, atrativo somente a uma pequena
parcela do estrato social com formação cultural verdadeiramente sólida.
Porém a falta de diversidade de temas, propostas, objetivos
que esse modelo viciado proporciona é nociva à conjuntura literária caseira.
Perpetua o fosso de distanciamento entre públicos e obras conforme o passar das
gerações. É necessário - e saudável – a existência de trabalhos menos
pretensiosos e que se mostrem mais cativantes ao público jovem até para ser
ponte de introdução e estreitamento desse público ao universo encadernado de
prosa e verso.
Felizmente a monotonia dos escopos literários brasileiros
começou a ser quebrada neste século, talvez pela influência da popularização da
cultura pop-nerd que angariou público embasbacante. Tendência que ganhou forma nas
letras nacionais, creio, por ser análise empírica, por André Vianco e seu
universo vampiresco e que veio a se consolidar, posteriormente, abrindo
oportunidades a novos escritores e desinibindo as editoras a jogar sempre no
seguro, com a narrativa diabólico-angelical de Eduardo Spohr.
A boa novidade de ocasião trata-se da odisseia fantástica de Afonso Solano, O Espadachim de Carvão. Enredo que se debruça nas aventuras do filho de uma das quatro potestades maternas dos habitantes de um planeta fictício, Kurgala, em busca de resposta sobre o porquê de ser ferozmente atacado e perseguido por toda sorte de criaturas que clamam por seu sangue bradando termo enigmático: “Ikibu”. Munido de suas espadas, Igi e Sumi, o jovem Adapak percorre um dos quatro continentes do planeta colocando a prova todo o conhecimento que adquiriu durante os anos de isolamento em uma ilha sagrada, enfrentando adversários atípicos, conhecendo seres exóticos e aprendendo a conviver com os mortais.
O texto apresenta vários pontos positivos como a capacidade
imaginativa do autor em desenvolver um universo riquíssimo sem a necessidade de
pormenores Tolkienianos para inserir o leitor no ambiente multicultural,
primitivo e selvagem onde se passa a estória, escolhendo momentos específicos
para concentrar seu talento descritivo (destaco a passagem que detalha a
caverna da entidade Enki’ När, por sinal, fundação que ilustra a capa) e se
omitindo de maiores detalhes em determinadas situações deixando ao leitor a
tarefa de preencher as lacunas com a própria imaginação, recurso que gera
ligeiro e tolerável estranhamento que logo se dissipa uma vez superado os
primeiros capítulos.
A obra se revela um caldeirão de referências a conceitos
clássicos habilmente alinhados em prol do desenvolvimento da narrativa, o que
significa que não se trata de uma colcha de retalhos mal costurada propiciando
furos gritantes de roteiro e situações constrangedoras de tão forçadas. Pelo
contrário, a trama flui de maneira orgânica obedecendo lógica harmoniosa. É um
condensado bem amarrado de arquetípicos e recursos basilares quanto à
construção de enredos aventurescos.
Isto, por si só, já valeria uma boa avaliação, mas seria
apenas mediana se optasse pela manutenção da previsibilidade dos desfechos já
saturados desses recursos. O autor brinca com essas conceituações as
subvertendo-as, seguindo por caminhos diversos, dando o seu toque de
originalidade aplicando aditivos modernizadores.
Outro aspecto positivo do trabalho, aliás, ao inserir
temáticas que dialoga com assuntos já característicos da contemporaneidade. É
inclusiva ao fazer questão de elaborar uma mitologia onde seres de variadas
espécies convivem juntos na mesma floresta, prédio, vilarejo, sociedade. O fato
do protagonista ser negro, fato raro, ressalta esse aspecto. O feminismo também
está presente ao se expor personagens femininas fortes que jamais assumem
postura pateticamente indolente a espera da salvação inequívoca do herói masculino. Pegam em armas, lutam pela própria sobrevivência, são verdadeiramente
úteis ao decidirem colaborar com o sucesso da jornada do exímio espadachim e
não têm medo de serem resolutas em suas decisões mesmo que contrariem o desejo
do personagem título. A importância que o autor confere sobre essa postura
altiva do núcleo feminino é evidenciado ao colocar o rompimento de uma dessas
personalidades femininas com o herói como evento importante no desenvolvimento
pessoal do mesmo.
As sequências de ação não decepcionam. Só pelo fato de se
elaborar minimamente a coreografia dos combates são dignas de acalorada
exaltação. Tenho como grande queixa aos romances policiais que, depois de
página por página sedimentando a construção de um clímax pretensamente
arrebatador, entregam a solução do mistério da forma mais insossa e econômica
possível, usando-se apenas de um único parágrafo, muitas vezes de pouquíssimas
linhas. Aqui, felizmente, isso não acontece e as lutas não caem na tediosa
banalidade com o espadachim valendo-se de sua perícia com as espadas, e dos
círculos Tibal, irrevogavelmente. Solano formula situações que dão variedade aos
desafios impostos ao protagonista exigindo novas mecânicas e estratégias
injetando tons aparentemente díspares, porém coesos dentro da narrativa
proposta: ora apresenta a letalidade brutal de um Itto Ogami, ora a expertise
calejada de um Simbad.
Meu único senão com a obra é a respeito da escolha da não
linearidade da exposição dos eventos fundamentais na jornada de Adapak. Entendo
que seja até perfeitamente compatível com o espírito matreiramente transgressor
que permeia a obra - e acho que foi bem executado – porém, por se tratar de um
livro de estreia, portanto, de apresentação ao um novo universo, universo este
com elementos muito próprios, a via mais conservadora, ou seja, da linearidade,
no início do volume entendo que seria a decisão mais adequada porque a sensação
de inquietação saudável ao se deparar com termos e situações completamente
alheias do conhecimento do leitor, creio que tenha sido essa a intenção do
autor ao optar em iniciar o relato pelo trecho escolhido, além, claro, de jogar
o fã do gênero direto na ação para captar de imediato sua atenção, foi
suplantada pelo desconcerto da falta de referência, do estranhamento incômodo.
Juntando tal sensação com as idas e vindas do roteiro corre-se o risco de jogar
os mais desatentos em confusão.
Mas detalhe que não chega a causar grandes prejuízos e nada
que uma rápida releitura não dê conta.
Acho uma pena que a edição da Leya não tenha oferecido
espaço para, ao menos, uma breve biografia do autor. Seria receio de que alguém
levantasse questionamento por Solano ser funcionário da editora? A qualidade da
obra demonstra que não há motivo, e nem justiça, de se apontar conflito de
interesse.
A falta das orelhas marcadores de texto pode ser tanto
indício de estratégia de mercado para baratear o produto como incerteza quanto à
viabilidade comercial. Se for o caso, é um exagero. Pela quantidade de páginas,
pelas ilustrações internas serem da autoria do próprio Affonso Solano e por se
tratar de um produto genuinamente brasileiro o preço final permaneceria
competitivo em relação aos bichos papões estrangeiros.
Colocando termos finais:
É um ótimo trabalho que fortalece as boas opções de leituras
diversas do cânone clássico brasileiro enriquecendo a pluralidade de nossa
literatura.
Que a ascensão de novos escritores continue.
Torçamos.