O Lobo da Estepe,
livro do escritor alemão nobelado Hermann Hesse (1877-1962), autor de outras
obras célebres como Demian e Sidarta, é uma narrativa de dissecação
de um tipo, em todos os ângulos possíveis, seja pelo olhar externo do coletivo
que o cerca ou pelo exame minucioso da dinâmica do universo interno,
psicológico, do ser em análise, no caso, Harry Haller (a semelhança com o nome
do autor não é mero acaso, trata-se de uma espécie de alter ego, já que tem a
mesma idade que Hesse quando iniciou a escrever esse volume, 50, aliás, a
persona do autor está diluída em vários personagens) um brilhante intelectual
recatado, socialmente inepto em razão de seu pudor excessivo desenvolvido por
sua timidez homérica, que o faz crer que sua integridade moral está atrelada ao
isolamento e ao consumo inveterado de Goethe e Mozart.
O livro é dividido em três partes sendo a primeira dedicada
a narrar à chegada do protagonista em uma estada temporária em uma pensão sob o
ponto de vista dos proprietários, em especial por parte do sobrinho da dona do imóvel.
A segunda parte leva o leitor a se familiarizar com esse
universo sob a perspectiva de Haller e, claro, a conhecer pormenorizadamente
sua substância interna, a sua visão de mudo, suas predileções, seus temores,
desgostos, vontades e o porquê de cultivar certos hábitos. É também o trecho
que vem a conhecer o manifesto do Lobo da Estepe, uma teorização com tom
doutrinário sobre uma persona supliciada por um conflito interno na qual se
divisa o Lobo, responsável por depreciar todas as tentativas de interação
duradoura com o mundo externo no afã de persuadir seu lado humano de afastar-se
da civilização, pois deseja satisfazer suas vontades de lobo, dentre elas, a de
permanecer em solidão serena, e o Homem, que é tentado a estabelecer vínculos,
em inserir-se na sociedade sem qualquer tipo de reserva. Manifesto que o
impacta profundamente e desperta o desejo de conhecer os autores da publicação
e de modificar o seu estilo de vida.
O terceiro ato debruça-se sobre o seu relacionamento com a
jovem Hermínia que se propõe a ajudá-lo a se libertar de sua metade Lobo o
forçando a se submeter por situações que lhe são muito custosas, mas que na
verdade tratam-se de algo banal aos mais simples de espírito, corriqueiro, como
dançar em um baile de máscaras, relacionar-se amorosamente com uma
desconhecida. Nesse capítulo é convidado a conhecer uma casa de espetáculo
singular orquestrada por um dos amigos de Hermínia, local onde passa por
situações únicas.
Os primeiros 2/3 do livro é espetacular, genial, não é
exagero. Como dito acima é um retrato riquíssimo de uma personalidade arguta
tanto sob o prisma do meio social que o cerca, que vive em uma sintonia, um ritmo
de vida, comum a todos, contrastando com o mundo a parte que o intelectual se
prende, tanto sob a ótica do próprio que parece infiltrar-se na mente do leitor
e emular o seu modo de pensar de tão preciso, minucioso, franco, despido de
qualquer pudor a narração se mostra ao escaneá-lo por dentro.
Outro fator que impressiona é a linguagem empregada pelo
autor, e nisso cabe prestar honraria a tradução da Bestbolso. É envolvente, cativante, prazerosa de ser lida e aliando
a incrível clareza, objetividade de Hesse para tratar de assuntos por vezes
intrincados, abstrusos, transmite uma sensação eufórica no leitor de estar
consumindo, sem enfado, dezenas de páginas em uma cadeirada só sobre temáticas
pouco difundidas, eruditas, raras; o fazendo se sentir especial, de que está
aproveitando bem o seu tempo, que ao terminar a leitura, vai se levantar mais
enriquecido.
Somente com uma linguagem agradável seria possível manter a
atenção do leitor sobre um enredo que versa por questões tão particulares,
introspectivas, porque dá-se a impressão, durante a leitura, que na verdade o
que se consome não é uma obra ficcional, mas um ensaio acadêmico, um imenso
artigo de um douto em psicologia porque a descrição de ambientes e de aspectos
físicos dos personagens são brevíssimos, enxutos, a narração se dedica quase
que integralmente nas divagações, nos raciocínios de Harry Haller, as suas
reações internas ante aos acontecimentos esporádicos. Sem um texto mavioso,
perseverar na leitura seria tarefa hercúlea.
É o êxito de conseguir dá vida, captar a atenção do público
para esses tipos de estórias de digestão árdua que fornece os indícios
necessários para distinguir os excepcionais do restante.
O ato final deixa um pouco a desejar, mas o grau de acerto
nas duas primeiras partes é tão retumbante que torna a terceira perdoável
(embora será considerada ao avaliar no Skoob, por exemplo).
Sem querer dá informações em excesso que possa prejudicar na
apreciação da estória, Haller é apresentado a um ambiente fantástico que o leva
a vivenciar situações inusitadas, extravagantes, aparentemente sem nexo, sem
coerência com a realidade. É uma clara alusão ao psicodelismo delirante
consequente do uso de substâncias estimulantes e viciosas, mas que são muito
fora da curva, muito estranhas, que desperta inquietação, constante intriga,
inquietamento que nunca é desfeito porque respostas não são dadas, a clareza de
início dissipa-se e resta ao leitor o esforço solitário de tentar a partir de
suas capacidades emoldurar um significado que dialogue com o que fora exposto
até esse ato final; o que não seria grande problema se fosse um recurso
narrativo casual, mas são várias ocasiões, ocorrências que se sucedem a outras
e que necessitam desse esforço para o leitor sentir-se a par do que realmente
ocorre. E isto tem o efeito de chatear porque de repente o amante das letras ver-se
a margem do universo narrado, o que prejudica a imersão e faz parecer que o
volume do texto é mais extenso do que realmente o é.
Se você já experimentou e aprovou Dostoievski, Clarice Lispector,
Kafka (achei o estilo de linguagem bem semelhante com este), gosta de leituras
de viés intimista, está atrás de uma obra literária que te acrescente algo ao
seu término, O Lobo da Estepe é o que
procura.
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