RESENHA: Os Irmãos Karamázov


Último livro do grande escritor russo Fiódor M. Dostoievski, Os Irmãos Karamázov é considerada a obra prima do autor e recebeu de Sigmund Freud elogio de deixar qualquer escritor nas alturas, tal o gabarito do enunciador: “O maior romance já escrito”.

O enredo se debruça sobre o relacionamento conturbado e complexo entre os membros da família Karamazov em uma cidade hipotética da Rússia do século XIX, narrada sobre o ponto de vista de um narrador anônimo que afirma ter acompanhado o terrível crime que envolveu a família e que repercutiu em todo o país cerca de 3 décadas atrás.

O patriarca da família, Fiódor Pavlovitch Karamázov, é um notório devasso que ascendeu socialmente graças ao dote de suas mulheres, que vieram falecer sem envolvimento direto deste, e vive uma vida de excessos sustentada por negociatas.




Péssimo pai, relegou a criação de seus filhos a parentes, criados e comunidade monastérica e ainda cuidou de subtrair soma considerável da herança de um dos seus filhos, fruto do primeiro casamento.

A prole desenvolveu-se com personalidades distintas:

O caçula, Alexi (ou Aliocha) Karamazov, desde cedo revela um lado místico mais aflorado, passando a viver como noviço em um mosteiro aos cuidados do Starietz Zósima. Sem dúvida o mais honrado de todo o clã Karamázov.


O do meio, Ivan Fiodorovitch Karamázov, se tornou um fino intelectual manipulador atormentado pelos dilemas de sua erudição que suprime as convenções tradicionais de moralidade por meio de convicções ateias.

E o mais velho, Dmitri Fiodorovitch Karamázov, é o de personalidade mais parecida com a do pai, excessivo, ciumento, inseguro, paranoico, emocionalmente instável, mas ao contrário do genitor, consegue preservar parcela mínima de honradez em suas atitudes.

Esmiuçando a personalidade e o cotidiano dos personagens e da cidade onde residem, a trama acaba centrando-se na rivalidade destrutiva de Fiódor e Dmitri quando ambos se enamoram da mesma mulher, Grushenka, de fama e caráter contestável, que se compraz em humilhar os homens com jogos manipuladores desde que se sentiu ultrajada por seu primeiro noivo na tenra juventude. A disputa ainda ganha um elemento incendiário pelo ressentimento antigo de Dmitri para com o pai pelo fato do dito cujo ter se apossado de parte de sua herança - e por teimar em não o restituir.



Se existe algo proibitivo de se afirmar sobre esse romance, é o de ser óbvio.


 Inicia sugerindo que será um volume com narrador de personalidade marcante, expressando-se e interagindo com o leitor de forma muito particular, embora o faça no decorrer da estória, contudo logo adota um estilo impessoal como se fosse um narrador onisciente, quebrando o estilo em intervenções esporádicas ao longo das centenas de páginas do livro.

Em seguida, revela sua força avassaladora no campo psicológico dissecando nos mínimos detalhes, mas de modo a evitar que os relatos pormenorizados ficassem enfadonhos, o que se espera de um bom escritor, a persona dos principais personagens e até de alguns secundários, virtude que será mais detalhada adiante, e com isso pensa-se que será o tom que conduzirá a narrativa até o seu final. No entanto, apesar da impressão se revelar verdadeira, descobre-se que a obra não fica restrita a psicologismos. Logo envereda pelos campos da documentação histórica e da filosofia ao descrever, por exemplo, a rotina, os hábitos e as tradições da vida no mosteiro e o cerne da doutrina de uma das autoridades do recinto religioso, o Starietz Zósima.


Ainda trata de dramas familiares e para o leitor que embarca nessa longa jornada sem saber de absolutamente nada do enredo, que foi o meu caso, causa nova surpresa ao alterar a rota dos acontecimentos para uma trama de investigação policial (percebe-se que o autor tem uma queda por crimes hediondos, já que seu outro livro célebre, Crime e Castigo... o nome é autoexplicativo não é mesmo?) seguida por uma de júri, com exposições sagazes, bem elaboradas, coesas, em suma, brilhantes, tanto por parte da defesa como por parte da acusação.

Ufa! Quantas reviravoltas.

E isso não é algo ruim. 


Pelo contrário.

 Um livro de centenas de páginas, a versão que li, uma edição antiga da Abril, tem 534 páginas, mas há outras mais recentes que dividiram a estória em 2 volumes que  somam mais de mil páginas (suspeito que os parágrafos quilométricos que me deparei explique o feito da Abril em publicá-lo com pouco mais de quinhentas), precisa de um roteiro que não peque por ser monotemático ou por ter um ritmo engessado para se manter interessante e relevante até o final, para dar aquele “estalo” no leitor quando ameaça ficar sonolento ou aborrecido; por mais que se revele imperativo, para plena compreensão do argumento central, volume tão espesso. E elaborar roteiro de tamanha grandeza ajustando uniformemente variadas temáticas cumprindo, no meu entender, com o desafio de assegurar sua digestão a quem o ler, sem dúvida, é digno de admiração.

Um aspecto que achei interessantíssimo foi o da capacidade assombrosa de Dostoievski de conferir as diversas figuras de seu enredo personalidades tão ricas, tão próprias, tão críveis. Mesmo se valendo de poucas descrições quanto a fisionomias e trajes, ele consegue introduzir na cabeça do leitor traços, características, estilos marcantes dos protagonistas com suas análises precisas, eficientes, detalhadas sobre a natureza dos tipos, o que ameniza um pouco a difícil tarefa de ficar imerso no universo ficcional que desenvolvera. Logo que cita um personagem fica fácil vir a mente o retrato mental que se constitui da peça no instante do primeiro contato com os relatos do autor sobre sua persona.



Ele também é exitoso, claro, sempre, segundo o meu entendimento, em injetar vivacidade no ambiente, na cidade palco dos infortúnios dos Karamázov, ao jogar luz em vários personagens, uns com participação relevante, outros usados apenas como artifícios de roteiros, ao expor curiosidades, ao relatar ocorrências históricas dentro do universo ficcional, ao nominar tipos de diferentes camadas e funções sociais. Isso passa a sensação de movimento, de historicidade, de que há uma comunidade, uma sociedade em pleno funcionamento, a todo vapor, a revelia se a narração está concentrada em somente uma figura do enredo ou em um contexto mais amplo. O leitor se sente, de alguma forma, inserido, transportado até a longínqua Rússia do Século XIX. O fato de não manter a narrativa presa a um único núcleo é outro aspecto importante que colabora em grande escala no ato de gerar a referida mobilidade.

Um feito, julgo, notável para qualquer escritor.

O texto é verborrágico.


E isso tem pontos positivos e negativos.


Explicando o termo: é um estilo que se aproxima muito da linguagem do teatro, ou seja, tem bastantes diálogos, inumeráveis, extensos. Há capítulos inteiros só de diálogos. Há quem goste, há quem prefira o estilo mais tradicional. Mas informo que a obra não é feita só de conversas. É uma mescla de narração e diálogos onde o segundo se destaca pela sua abundância, o que não é tão corriqueiro nas publicações atuais.

Eu mesmo não me importo. Desde que os diálogos sejam bons e a estória interessante, embarco na leitura sem problema. E aqui há, sem sombra de dúvidas, exposições orais brilhantes, mas que, no meu discernimento, apresentam deficiências que prejudicam a leitura e compromete o desempenho, a finalidade, de muitos deles.


Mas comecemos pelo aspecto favorável.

Ao contrário de muitos escritos do período, o texto não gasta muito papel com descrições detalhadas e numerosas sobre ambientes físicos, sobre trajes, objetos a fim de deixar o leitor infalivelmente envolvido, embriagado, inserido no universo ficcional por meio de exposição sucessiva de cheiros, sabores, texturas etc. O faz, mas de maneira breve e julguei eficiente.  Voltando a considerar o tamanho do volume, isso deve ser tratado como uma excelente notícia, porque por mais habilidoso que seja o escritor em tornar minimamente interessante descrições detalhistas acerca do que é inanimado, se o estilo for renitente quanto a radiografar cada cenário, fatalmente irá fracassar na missão de deixá-las atraentes conforme o número de incidências dessa natureza se revelar elástico, ao menos eleva-se a probabilidade da ruína. Mas como é movido em grande parte por diálogos e está mais preocupado com o que há dentro do que por fora dos personagens, o estilo imprime ritmo interessante, ágil, embora exista partes que irá requerer paciência do leitor.

As falas dos personagens introduz dinâmica por expor, sem recursos de transição, intercalados um no outro, tanto o argumento inicial que motiva o ato do pronunciar-se como exemplificações, anedotas, digressões derivadas do tópico inicial e até mesmo mudanças bruscas de assunto. Em poucas páginas, absorve-se quantidade de informações que podem mudar completamente o cenário estabelecido no começo do capítulo. O que requer muita atenção por parte do leitor para não se perder na estória. Emprega ritmo que, sem o qual, poderia deixar a leitura com trechos mais arrastados, o que seria fatalmente desestimulador para vencer a robusta brochura.


No entanto, observo que esses assuntos vários espremidos nos diálogos, muitos deles com mudanças drásticas de humor, prejudica na hora de tentar se colocar na pele do de voz ativa, de imaginar sua interação com o interlocutor, ou interlocutores, seus gestos, tom, até o de compreender a sua real intenção ao emitir determinados raciocínios.

Injetar pequenas informações sobre a postura, o gestual, o sentimento interno durante os diálogos ajudaria no trabalho de total envolvimento com a estória e não creio que acrescentaria muito mais páginas e nem deixaria a leitura arrastada; pelo contrário, acho que deixaria os personagens e seus embates retóricos com cores muito mais vívidas e muita da emoção que se tenta passar em algumas passagens seriam transmitidas de melhor forma. Acresce que também se enxertaria momentos de “respiros” muito bem vindos entre as exposições longuíssimas que preenche a narrativa, pois é cansativo e pouco crível imaginar explanações à Fidel Castro com personagens estáticos, sem movimento, falando do início ao fim como se fosse uns robôs com feições impassíveis. Para quem tem muita criatividade, energia ou tempo de pensar por si próprio uma linguagem corporal personalizada para cada integrante do enredo pode até não se incomodar, mas quem não conta com um desses recursos, mesmo que temporariamente, é provável que se frustre.

Outro problema é a quantidade de personagens. São muitos e vários com funções modestas, pálidas, dentro da narrativa. Não seria um problema, até porque citei como aspecto positivo que colabora para dar vida a cidade onde a estória é ambientada, se esses personagens discretos tivessem participações únicas, mas ocorre que acabam sendo citados decorridos algumas dezenas de páginas, causando confusão, dúvida se são tipos já anteriormente aludidos e sem têm alguma relevância dentro da trama (complica para os brasileiros o fato dos nomes estarem grafados em idioma pouco familiar).


Também considerei algumas interações excessivamente melodramáticas, beirando aos dramalhões mexicanos.

Avaliando as virtudes e os defeitos, segundo as minhas impressões, o saldo é bem mais favorável do que negativo.

É uma leitura que tem a capacidade de fazer rir ao narrar costumes inusitados da época, de gerar enternecimento a determinados personagens expondo dramas de temática universal, de surpreender pelos movimentos bruscos de roteiro e por argumentações extremamente lúcidas e bem fundamentadas, e de fascinar pela humanidade das figuras retratadas com características tão particulares como reconhecíveis.


 Como não recomendar?



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