Warcraft: muito raso para grandes emoções

Fui ao cinema com o olhar de um espectador novato em matéria de Warcraft. Jamais joguei um único minuto e nem li o vasto material disponível nas livrarias. Por isso, não vou entrar no mérito se foi bem ou mal adaptado, se faltou isso ou aquilo. Focarei acerca da simplificação exposta na tela, se gerou uma estória envolvente que ficará dias ou anos incidindo na lembrança do cinéfilo.

Gostei da premissa de duas realidades distintas se encontrando e o inevitável choque que o vislumbre do diferente traz, ainda mais quando uma das partes se trata de um invasor com clara intenção colonialista e caótica. Isto porque os Orcs de um mundo chamado Draenor necessitam de um novo lar após a ruína deste, vítima da fome voraz do bruxo Gul'dan que alimenta  a magia perversa que detêm, chamada vileza (eu não sei como é em inglês, mas achei muita merda esse termo) absorvendo a força vital dos seres vivos. Liderados pelo místico, atravessam o "Portal Negro", fenda temporal que os levam até Azeroth, planeta habitado por humanos. 

Curiosamente, o lado que apresenta mais ingredientes dramáticos e, por isso, mais apreciável, é o dos Orcs, todos feitos por excelente computação gráfica. A aliança composta por humanos faz o que se espera em situação tempestuosa: organiza-se para promover resistência em prol da autopreservação. Enquanto a hibridez animalesca e racional além de conquistar uma nova casa aspira por um período de bonança, onde possa viver preservando a beleza e os recursos naturais a fim de perpetuar suas gerações futuras no lugar a ser ganho. Tal esperança lida com um grande entrave, a ambição destrutiva do responsável de os colocar ali, Gul'dan. Logo, percebe-se de que nada adiantará a conquista do estranho mundo se o bruxo continuar dando as cartas. Essa percepção é encarnada pelo Orc Durotan, cabeça da tribo dos Lobos de Gelo, que planeja uma rebelião contra o poderoso bruxo conquistando o apoio da Aliança humana, já que não recebe a adesão irrestrita de seus pares, divididos por variadas correntes tribais.


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O elo que faz ser possível a impensável conspiração é a jovem Garona, capturada na primeira investida bem sucedida dos guerreiros de Azeroth. Ela é fruto da relação incomum entre um homem e uma Orquisa, resultando em uma aparência exótica. Envolvimento tido como condenável na avaliação de seus cuidadores, a tratando como uma “maldita”; a relegando ao pior tratamento possível. Somente por esse contexto foi capaz de aprender a língua falada pelos homens, pois passava boa parte de seu tempo com os prisioneiros sequestrados de Azeroth, usados como fonte de energia para a abertura do imenso portal. Uma personagem que teria muito o que dizer a variados tipos que se sentem deslocados em nossa realidade, e acredito que o autor tinha consciência dessa capacidade de representação que a personagem evoca ao idealizá-la. Porém, no filme, isso não foi bem explorado.

E aqui entramos na grande problemática do longa na minha avaliação. Ele não consegue fazer com que nos importemos com os personagens. Tudo é desenvolvido de maneira muito apressada. É visível o receio de entediar o expectador com um volume cavalar de informações. E acho que conseguiu apresentar os pilares básicos do enredo do jogo de forma enxuta sem comprometer o entendimento geral, no entanto, acabou sacrificando a profundidade necessária para conquistar empatia. As informações são jogadas sem dar tempo para que seja processada, sentidas, verdadeiramente vivenciadas pelos protagonistas, pois logo a atenção é voltada para outros detalhes que também terão efeitos efêmeros devido à repetição do equívoco. 

Outro ponto que incomoda é a resolução extremamente ágil e simples das lutas principais. Em nenhum momento, chega-se a se pensar em um destino trágico dos mocinhos nesses embates, por que as dificuldades que enfrentam são poucas, os danos que recebem também, a resistência do adversário, aquém do esperado, especialmente quanto a um dos Orcs que acaba recebendo um "upgrade". Isso contribui para que o filme falhe ao tentar proporcionar cenas marcantes, épicas, no que se refere a batalhas.


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Algo que me causa estranhamento é o não envolvimento da seita de magos, existentes no mundo dos humanos, no conflito. Na película, constata-se que as habilidades do ser em questão faz diferença substanciosa, seja a de um mago poderosíssimo e experiente como Medivh, encarregado de proteger o mundo de Azeroth por ser o guardião (O aspecto mais cativante do lado de nossos semelhantes. Talvez possa se acrescentar os possíveis animais de natureza fantástica, a julgar pela águia de proporção incomum) seja um mago iniciante e desertor como o curioso e atrevido Hadgar. Muito do trabalho de conter a ameaça teria sido facilitado com a presença em peso da casta. É compreensível o distanciamento do grupo no primeiro ato, mas a partir do momento que Hadgar consegue contato com uma entidade ancestral milenar, há muito tempo incomunicável com os mortais, na fuça de um dos chefes da organização, esse entendimento evapora-se. Apesar do histórico, desacreditar das palavras do jovem diante de evento que os próprios classificaram como inédito, nem sequer investigar, demonstra uma inacreditável imprudência.

A música tema recorreu à obviedade que os filmes do gênero recorrem e não trouxe nenhum acréscimo ao padrão estabelecido.

Houve muitas críticas quanto o desempenho de alguns atores, as mais injustas, a meu ver, foram com Ben Foster, o mago Medivh. Acho que foi bem nas cenas com uso de efeitos visuais, as melhores do filme, e soube passar um aspecto de serenidade e sabedoria; qualidades, creio, indispensáveis em um mago. Travis Fimmel, o guerreiro Lothar, a força belicosa de maior destaque nas tropas humanas, entregou o que se espera de um militar em batalha, já na parte dramática sem dúvida pouco comoveu. Todavia, com desenvolvimentos tão rasos, são poucos os atores que conseguem encenação excepcional. Soube que o filme teve um corte de 40 minutos! Quem sabe o melhor de Fimmel ficou entre os restos da carne inutilizada?


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O maior legado desse filme será o uso da captura de movimentos empregada nos atores do núcleo dos Orcs. A perfeição dos detalhes é tal que, pela primeira vez, essa técnica não suprimiu a expressão dos atores, sendo possível captar sentimentos observando o deslocar dos músculos faciais.

O design merece destaque. Os ambientes das cidades, florestas, aldeias e prisões foram muito bem detalhados e são completamente distintos. 

Considerando tudo o que foi exposto o resultado mostrou-se mediano. Levando em conta que a bilheteria está indo bem, me parece razoável e válido uma continuação. Eu daria uma nova chance. Se não foi um primor, também ficou longe de ser o objeto de aversão da casa dos horrores, requer muito esforço superar o Adam Sandler, por exemplo. Observando as falhas apontadas, acrescentando um pouco mais de originalidade, mais segurança para fazer ousadias, preservando a qualidade visual e a capacidade de síntese do universo grandioso a que se dedica, haverá condições de presentear o público com uma obra notável. 


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É preciso lembrar que a última grande trilogia adaptada, o Batman de Nolan, teve um começo semelhante - frisando que semelhante não é o mesmo que idêntico - uma primeira parte competente, entretanto distante de causar o alvoroço de sua sequência. 

Torçamos que a pretensa franquia percorra caminho idêntico.  


Tempos Muito Estranhos

Uma das coisas que gosto ao frequentar sebos é a sensação de que o destino tem a oportunidade de fazer revelações detalhadas que a correria do dia a dia impede que se diga, que prestemos atenção, forçando-nos a vivenciar experiências pedagógicas que podem levar meses ou anos para se completar o ciclo, as etapas da transmissão da mensagem, do aprendizado. Como um espaço místico livre das amarras do mundo mundano capaz de facilitar o diálogo entre mortais e forças desconhecidas. Mas em vez de arrebatamento, torna-se hospedeiro temporário de entidades, sonhos impactantes, animais com dom de fala, ou simplesmente receber o comunicado por meio de um chefe tribal se anunciado como portador da verdade, você é atraído por uma brochura empoeirada, fora da lista dos mais vendidos, lançada há muitos anos, a preço popular, capaz de te entreter e enriquecer culturalmente de maneira inesperada.

Tive esse prazer de sentir-se partícipe de algo muito especial na leitura de Tempos Muito Estranhos de Doris Kearns Goodwin, lançado em 2001 pela Nova Fronteira.
O tempo que o título se refere é o período sangrento e convulsivo da segunda guerra. Outro livro de segunda guerra? Já existem tantos! Verdade, mas talvez poucos com o enfoque escolhido pela autora. Sai de cena o front repleto por carcaças desfiguradas de combatentes suburbanos, a engenhosidade ou debilidade das estratégias de militares de alta patente, a população indefesa massacrada no fogo cruzado, os prisioneiros feitos de cobaias do pior que o Homem pode oferecer e entra a casa mais famosa da nação mais poderosa do planeta liderada por uma figura inesquecível.



 Roosevelt.


Franklin Delano Roosevelt, 32º presidente dos EUA, eleito quatro vezes, seguidamente, para o cargo (feito único na nação orgulhosa de permitir a alternância de poder) homem responsável de erguer a América após o colapso da crise de 1929 lançando programas de raízes impopulares entre a elite financeira, robustecendo o Estado com políticas de auxílio ao trabalhador e elevação de impostos as camadas sobejantes, intitulando o ousado e inédito plano econômico de New Deal. Feito que já lhe daria os merecidos louros da história, no entanto, nova ameaça com efeitos ainda mais devastadores pairava no horizonte adiando os planos de uma recatada aposentadoria. Convicto de que uma expressão inexperiente na cadeira presidencial, em momento tão crítico, elevaria o risco do futuro de sua pátria, decide sedimentar a terceira candidatura e liderar novamente os norte-americanos em tempos difíceis e muito estranhos.

Mas engana-se que pensa que a obra trata-se de uma biografia. Não somos transportados a 30 de janeiro de 1882, data de nascimento de Roosevelt, até o fim de sua vida. A proposta é contar os bastidores do poder em um dos centros políticos de maior relevância daquela era conturbada. Evidentemente que o chefe do executivo se destaca por ser quem é, mas isso não é impeditivo que outras personagens se destaquem, um dos grandes atrativos do livro, porque como são pessoas de papel secundário perante a história não há tanto material disponível, apesar das grandes contribuições que prestaram.  O princípio é 1940 logo após o findar da “guerra de mentira” com as consecutivas invasões de Hitler e suas tropas nazistas contra as nações europeias, dentre elas a França. Nesse contexto, o livro se debruça sobre a situação política de Roosevelt, seus desafios no congresso, à rejeição do grosso da população para com a ideia de participação efetiva na guerra, pouco tempo depois do trauma da primeira, o movimento da oposição para minar sua popularidade visando às eleições futuras, seu cotidiano na Casa Branca, seus lazeres, filmes que assistia, onde costumava descansar em férias, seus hobbies, a relação com a esposa, com os assessores, secretárias, membros do partido, com a imprensa, com autoridades refugiadas, com quem compartilhava suas aflições, quem o ajudava nos discursos e as dificuldades proporcionadas pela poliomielite; sempre situando o leitor sobre os acontecimentos no centro do conflito bélico.



Churchill por sua tenacidade, ousadia e coragem em se opor ao Nazismo é sem dúvida o grande líder a se destacar no confronto, porém seu brilho é tão intenso que acaba ofuscando outras peças tão determinantes quanto, que é o caso de Roosevelt, como se poderá constatar ao longo do relato. Descrevo apenas uma das decisões vitais que acabou adotando que contribuíram largamente para o desfecho que conhecemos. Foi decisão sua lutar para que os EUA fornecessem material bélico aos Ingleses, costurando a Constituição Americana que proibia a venda do material sem receber o valor estipulado de antemão, pois os britânicos não tinham condições de investimento imediato, e ignorando os conselhos veementes do departamento de defesa de negar o apoio, em razão do entendimento de que a segurança nacional ficaria desguarnecida na iminência de um ataque.  Aliás, a relação entre essas duas grandes figuras recebe esmerada atenção, destaco trechos que demonstram o grau de companheirismo que adquiriram e dá uma amostra do estilo arejado, normalmente identificável em semanários, da autora:


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“Em quase todo o período de três semanas, a despeito dos esforços de Eleanor, as noitadas continuaram. ‘Mamãe espumava’, relembrou Elliott, ‘entrava e saía da sala, dava indiretas sobre sono, mas Churchill não tomava conhecimento’. Parecia até, acreditava Elliott, que ele queria, deliberadamente, provocar Eleanor, ao manter Roosevelt fumando charutos e bebendo brandy. Revoltada com as fartas bandejas de bebidas que acompanhavam Churchill onde quer que fosse, Eleanor, foi até Franklin – relembra a arrumadeira da Casa Branca, Lillian Parks – e disse-lhe ‘ que estava preocupada com a influência de Churchill sobre ele, por causa de todo aquele álcool. FDR replicou, dizendo a ela para não se preocupar, porque não era o lado dele da família que tinha problemas com a bebida”.


“As informações vinham dos departamentos da guerra e da marinha; eram entregues por mensageiros várias vezes ao dia e transferidas para os grandes mapas. Alfinetes especiais identificavam os líderes dos Três Grandes. O alfinete de Churchill tinha a forma de um charuto, o do FDR, de uma piteira, e o de Stalin, a de um cachimbo feito de urze branca. Como os relatórios ultrassecretos chegavam a qualquer hora, a sala era operada ininterruptamente, em três turnos, por oficiais destacados pela marinha, exército e força aérea. Além desse pessoal, o acesso só era permitido a Roosevelt, Hopkins, Marshall, King e Leahy”.



“Houve uma ocasião, no entanto, em que Eleanor, passando na frente da Sala da Situação a caminho do saguão, deu uma olhada para dentro do cômodo. Lá, postados diante de mapas brilhantemente coloridos, viu o marido e o primeiro-ministro entretidos em animada conversa, apontando para os diferentes alfinetes dos diversos teatros de operações. ‘Pareciam dois meninos brincando de guerra, ’ observou Eleanor. ‘Davam a impressão de se divertirem bastante, na verdade, até demais. Fiquei um pouco triste.”


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Por falar em Eleanor Roosevelt, ela era uma notoriedade que faz jus boa parte do livro, capítulos inteiros, se dedicar a sua história. Rompeu paradigma ao fazer do cargo de primeira dama algo mais do que um adorno a figura do presidente, levantando pautas que somente décadas adiante receberia o cuidado necessário, anos 60, como os direitos dos negros e o empoderamento feminino, além de ter se transformado nos “olhos” de FDR ao fazer inspeções por todo o país nos prédios da administração pública. Como Roosevelt era cadeirante, enfrentava dificuldades ao percorrer longas distâncias – e nem era aconselhado – decidiu ensinar a esposa o que deveria observar e anotar ao chegar aos locais de visitação. Eleanor fora tão competente nas descrições do que encontrava que logo o marido deixou-se de se preocupar com essa questão, tal a confiança que depositava na primeira dama. Sua independência e expertise ao lidar com a coisa pública era tão notória que chegou a assumir um cargo dentro do governo, promovendo novo ineditismo ao papel antes visto como decorativo, e assinar uma coluna veiculada em vários jornais lida por milhares de pessoas. Tal desenvoltura era alvo de comentários machistas que a aconselhavam “a cuidar do marido”.

Um retrato da transformação de uma sociedade regada a muitos sacrifícios sob a perspectiva de seus maiores nomes, desnudados da roupagem oficiosa ao se desvelar suas virtudes, fraquezas, amores, decepções, fé.

Imperdível.