Uma das coisas que gosto ao frequentar sebos é a sensação de que o
destino tem a oportunidade de fazer revelações detalhadas que a correria do dia
a dia impede que se diga, que prestemos atenção, forçando-nos a vivenciar
experiências pedagógicas que podem levar meses ou anos para se completar o
ciclo, as etapas da transmissão da mensagem, do aprendizado. Como um espaço
místico livre das amarras do mundo mundano capaz de facilitar o diálogo entre
mortais e forças desconhecidas. Mas em vez de arrebatamento, torna-se
hospedeiro temporário de entidades, sonhos impactantes, animais com dom de
fala, ou simplesmente receber o comunicado por meio de um chefe tribal se
anunciado como portador da verdade, você é atraído por uma brochura empoeirada,
fora da lista dos mais vendidos, lançada há muitos anos, a preço popular, capaz
de te entreter e enriquecer culturalmente de maneira inesperada.
Tive esse prazer de sentir-se partícipe de algo muito especial na
leitura de Tempos Muito
Estranhos de Doris Kearns
Goodwin, lançado em 2001 pela Nova Fronteira.
O tempo que o título se refere é o período sangrento e convulsivo
da segunda guerra. Outro livro de segunda guerra? Já existem tantos! Verdade,
mas talvez poucos com o enfoque escolhido pela autora. Sai de cena o front
repleto por carcaças desfiguradas de combatentes suburbanos, a engenhosidade ou
debilidade das estratégias de militares de alta patente, a população indefesa
massacrada no fogo cruzado, os prisioneiros feitos de cobaias do pior que o
Homem pode oferecer e entra a casa mais famosa da nação mais poderosa do
planeta liderada por uma figura inesquecível.
Roosevelt.
Franklin Delano Roosevelt, 32º presidente dos EUA, eleito quatro
vezes, seguidamente, para o cargo (feito único na nação orgulhosa de permitir a
alternância de poder) homem responsável de erguer a América após o colapso da
crise de 1929 lançando programas de raízes impopulares entre a elite
financeira, robustecendo o Estado com políticas de auxílio ao trabalhador e
elevação de impostos as camadas sobejantes, intitulando o ousado e inédito
plano econômico de New Deal. Feito que já lhe daria os merecidos louros da
história, no entanto, nova ameaça com efeitos ainda mais devastadores pairava
no horizonte adiando os planos de uma recatada aposentadoria. Convicto de que
uma expressão inexperiente na cadeira presidencial, em momento tão crítico,
elevaria o risco do futuro de sua pátria, decide sedimentar a terceira
candidatura e liderar novamente os norte-americanos em tempos difíceis e muito
estranhos.
Mas engana-se que pensa que a obra trata-se de uma biografia. Não
somos transportados a 30 de janeiro de 1882, data de nascimento de Roosevelt,
até o fim de sua vida. A proposta é contar os bastidores do poder em um dos
centros políticos de maior relevância daquela era conturbada. Evidentemente que
o chefe do executivo se destaca por ser quem é, mas isso não é impeditivo que
outras personagens se destaquem, um dos grandes atrativos do livro, porque como
são pessoas de papel secundário perante a história não há tanto material disponível,
apesar das grandes contribuições que prestaram. O princípio é 1940 logo
após o findar da “guerra de mentira” com as consecutivas invasões de Hitler e
suas tropas nazistas contra as nações europeias, dentre elas a França. Nesse
contexto, o livro se debruça sobre a situação política de Roosevelt, seus
desafios no congresso, à rejeição do grosso da população para com a ideia de
participação efetiva na guerra, pouco tempo depois do trauma da primeira, o
movimento da oposição para minar sua popularidade visando às eleições futuras,
seu cotidiano na Casa Branca, seus lazeres, filmes que assistia, onde costumava
descansar em férias, seus hobbies,
a relação com a esposa, com os assessores, secretárias, membros do partido, com
a imprensa, com autoridades refugiadas, com quem compartilhava suas aflições,
quem o ajudava nos discursos e as dificuldades proporcionadas pela
poliomielite; sempre situando o leitor sobre os acontecimentos no centro do
conflito bélico.
Churchill por sua tenacidade, ousadia e coragem em se opor ao
Nazismo é sem dúvida o grande líder a se destacar no confronto, porém seu
brilho é tão intenso que acaba ofuscando outras peças tão determinantes quanto,
que é o caso de Roosevelt, como se poderá constatar ao longo do relato.
Descrevo apenas uma das decisões vitais que acabou adotando que contribuíram
largamente para o desfecho que conhecemos. Foi decisão sua lutar para que os
EUA fornecessem material bélico aos Ingleses, costurando a Constituição
Americana que proibia a venda do material sem receber o valor estipulado de
antemão, pois os britânicos não tinham condições de investimento imediato, e
ignorando os conselhos veementes do departamento de defesa de negar o apoio, em
razão do entendimento de que a segurança nacional ficaria desguarnecida na
iminência de um ataque. Aliás, a relação entre essas duas grandes figuras
recebe esmerada atenção, destaco trechos que demonstram o grau de
companheirismo que adquiriram e dá uma amostra do estilo arejado, normalmente
identificável em semanários, da autora:
“Em quase todo o período de três semanas, a despeito dos esforços
de Eleanor, as noitadas continuaram. ‘Mamãe espumava’, relembrou Elliott,
‘entrava e saía da sala, dava indiretas sobre sono, mas Churchill não tomava
conhecimento’. Parecia até, acreditava Elliott, que ele queria,
deliberadamente, provocar Eleanor, ao manter Roosevelt fumando charutos e
bebendo brandy. Revoltada
com as fartas bandejas de bebidas que acompanhavam Churchill onde quer que
fosse, Eleanor, foi até Franklin – relembra a arrumadeira da Casa Branca,
Lillian Parks – e disse-lhe ‘ que estava preocupada com a influência de
Churchill sobre ele, por causa de todo aquele álcool. FDR replicou, dizendo a
ela para não se preocupar, porque não era o lado dele da família que tinha
problemas com a bebida”.
“As informações vinham dos departamentos da guerra e da marinha;
eram entregues por mensageiros várias vezes ao dia e transferidas para os
grandes mapas. Alfinetes especiais identificavam os líderes dos Três Grandes. O
alfinete de Churchill tinha a forma de um charuto, o do FDR, de uma piteira, e
o de Stalin, a de um cachimbo feito de urze branca. Como os relatórios
ultrassecretos chegavam a qualquer hora, a sala era operada ininterruptamente,
em três turnos, por oficiais destacados pela marinha, exército e força aérea.
Além desse pessoal, o acesso só era permitido a Roosevelt, Hopkins, Marshall, King
e Leahy”.
“Houve uma ocasião, no entanto, em que Eleanor, passando na frente
da Sala da Situação a caminho do saguão, deu uma olhada para dentro do cômodo.
Lá, postados diante de mapas brilhantemente coloridos, viu o marido e o
primeiro-ministro entretidos em animada conversa, apontando para os diferentes
alfinetes dos diversos teatros de operações. ‘Pareciam dois meninos brincando
de guerra, ’ observou Eleanor. ‘Davam a impressão de se divertirem bastante, na
verdade, até demais. Fiquei um pouco triste.”
Por falar em Eleanor Roosevelt, ela era uma notoriedade que faz
jus boa parte do livro, capítulos inteiros, se dedicar a sua história. Rompeu
paradigma ao fazer do cargo de primeira dama algo mais do que um adorno a
figura do presidente, levantando pautas que somente décadas adiante receberia o
cuidado necessário, anos 60, como os direitos dos negros e o empoderamento
feminino, além de ter se transformado nos “olhos” de FDR ao fazer inspeções por
todo o país nos prédios da administração pública. Como Roosevelt era
cadeirante, enfrentava dificuldades ao percorrer longas distâncias – e nem era
aconselhado – decidiu ensinar a esposa o que deveria observar e anotar ao
chegar aos locais de visitação. Eleanor fora tão competente nas descrições do
que encontrava que logo o marido deixou-se de se preocupar com essa questão,
tal a confiança que depositava na primeira dama. Sua independência e expertise
ao lidar com a coisa pública era tão notória que chegou a assumir um cargo
dentro do governo, promovendo novo ineditismo ao papel antes visto como decorativo,
e assinar uma coluna veiculada em vários jornais lida por milhares de pessoas.
Tal desenvoltura era alvo de comentários machistas que a aconselhavam “a cuidar
do marido”.
Um retrato da transformação de uma sociedade regada a muitos
sacrifícios sob a perspectiva de seus maiores nomes, desnudados da roupagem
oficiosa ao se desvelar suas virtudes, fraquezas, amores, decepções, fé.
Imperdível.
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