RESENHA: Nova York: A Vida na Grande Cidade – Will Eisner


Esse encadernado lançado pelo selo da CIA das Letras, Quadrinhos na CIA, é uma coletânea de quatro graphic novels do pioneiro desse conceito, um dos primeiros quadrinhistas ilustres da indústria de comics, do criador da série The Spirit, o multipremiado Will Eisner, que inclusive nomeia o principal prêmio do segmento nos EUA, o Eisner Award, que versam sobre o mesmo tema: a vida na grande cidade. Mais especificamente: Nova York.

Apesar de ambientar as estórias no município de origem, Eisner consegue, por meio do seu olhar arguto, de sua sensibilidade profunda e rara, universalizar a temática dos relatos ao retratar hábitos, tipos e situações características da vida em uma metrópole, sendo possível qualquer pessoa que já tenha passado por tal experiência se identificar com várias de suas descrições.

O volume é composto por numerosos microcontos intercalados por enredos mais aprofundados, muito deles centrando-se sobre temas, situações, pessoas que normalmente passam batido pelo olhar da multidão no ritmo frenético da cidade grande, mas não pelos olhos atentos de alguém como Eisner, que parece agradar-se muito ao assumir uma cadência díspar da maioria e se dedicar a contemplação, ao estado de alerta para captar essas pequenas minúcias submersas pelas necessidades prementes; de se comportar como um sagaz expectador da vida em movimento. Aliás, na segunda metade do volume passa a assumir escancaradamente essa posição ao se desenhar observando o público com uma caderneta e lápis na mão.





São estórias que giram em torno de um microcosmo de pessoas que interagem com um hidrante, por exemplo, que participam da acumulação do lixo em um bueiro, que utilizam uma escadaria para socializar ou para contribuir em uma brincadeira; sobre o universo de desejos e aflições que ocupam a mente dos passageiros em um vagão lotado do metrô; sobre os desencontros provocados pelo pandemônio da urbe; sobre pessoas solitárias, amarguradas, a margem da socialização esperada em um espaço com tamanha concentração portentosa de seres. Relatos envolvidos pelo humor irônico e pelo tom polidamente crítico quanto às injustiças sedimentadas no cerne da ordenação social do olhar inquieto e onisciente de Eisner.

Pelo estilo ágil de sua escrita e traço, lapidada por anos ao desenhar tiras para jornais, o leitor rapidamente se vê testemunhando a formação de um amplo mosaico que ao seu final concluirá uma dissecação minuciosa sobre o modo de vida em uma metrópole populosa (partindo do começo do século XX até o princípio dos anos 90) ao somar todos os fragmentos dispersos. Técnica, seja por parte do autor ou por obra do trabalho editorial, que nesse caso se mostrou tão eficiente ao estabelecer um panorama quanto a uma abordagem generalista que se restringir-se a assuntos macros.
  
É curioso observar que, estando ciente do período histórico em que se passam esses singelos contos (o princípio da superpopulação nas cidades, a degradação de bairros, cortiços, conjuntos habitacionais; os meios de transportes insuficientes, a proliferação de crimes, o cinza devorando descontroladamente o verde por meio de construções nababescas e irregulares), é quase inevitável sentir que na verdade se descreve uma cidade terceiro mundista como São Paulo; e uma vez instaurada essa impressão vem a inquietadora constatação do quão atrasados nós, moradores da periferia dos centros de poder e pujança, estamos. Pois se muitas dessas situações de precariedade que marcaram a época que o autor resgata, ou registra, ainda perduram nas grandes cidades do planeta, muitas delas, neste século XXI, já não se encontram tão presentes no cotidiano de seus habitantes, ao contrário do terceiro mundo que ainda não apresenta perspectivas de, nem sequer a longo prazo, sanar esses problemas devido a inércia não só da casta política, mas também da população. 





O passado longínquo de Eisner continua sendo a realidade de nossos dias.

As ilustrações são um desbunde visual tamanha a riqueza dos detalhes que conferem nos ambientes, na paisagem, nos prédios, nas roupas, nas expressões faciais, na linguagem corporal dos personagens. Percebe-se o impacto das emoções intensas influenciando o modo de andar dos protagonistas, o peso e a elasticidade das roupas, a passagem do tempo deteriorando fisicamente as pessoas. São vários os impactos embasbacante de paisagens de páginas inteiras ou de meias páginas proporcionados pela quantidade de informações a ser absorvidas. Como os inúmeros objetos espalhados no entorno de uma linha de trem, as dezenas de pessoas sobre uma calçada fazendo movimentos ou ações específicas; as rachaduras nas calçadas, o lixo sendo arrastado pelo vento, os adornos arquitetônicos dos vertiginosos edifícios. Sem contar a maestria do uso dos objetos em cena para provocar transições de uma ação a outra sem necessitar de novos ângulos e, consequentemente, mais papel. Novamente outro benefício extraído dos longos anos produzindo tiras nos jornais.

O estilo enxuto e objetivo dessa técnica que se utiliza muito da linguagem gestual, aliada à coloração preta e branca, transmite a ideia de se acompanhar uma série de curtas-metragens do cinema mudo. Não foram raras as vezes que me deparei pensando em Chaplin ou inserindo, mentalmente, uma trilha sonora típica dessa época, dedos frenéticos no piano, durante a leitura.







Mas há circunstancias nesse estilo que incomodam.

Ocorre que a objetividade cirúrgica, por vezes, prejudica o desenvolvimento do vínculo emocional dos personagens com determinados fatos ou objetos. A elaboração sucinta, econômica, dessas conexões dificulta a compreensão da importância de determinados eventos na vida dos protagonistas, pois parece evidente que ficou faltando indícios, elementos que justifiquem determinadas atitudes e que façam o leitor acreditar na trama que se desenvolve, que o faça vê-la como crível ao invés de um enredo eivado de artificialismo, por mais que se saiba da ocorrência dessas situações narradas dentro de nossa realidade e do caráter plausível que carregam.

O paralelo que se pode traçar entre as melhores estórias, onde o estilo funciona plenamente, e as piores, onde fracassa fragorosamente, é: quando bem sucedido, Chaplin. Quando não, pequenos curtas metragens que remonta aos primórdios dos estúdios Disney, tal a simploriedade. Dá-se a impressão que se consome algo destinado ao público infantil.





A edição da CIA é belíssima, robusta, com uma capa maravilhosamente colorida. Há bons textos de introdução como o de Neil Gaiman (que por sinal, ando gostando mais de seus comentários sobre outras obras do que propriamente de seus textos originais), além de conter artes finalizadas que foram preteridas pelo autor.

Para quem gosta da linguagem de tiras de jornais, é fã de Will Eisner, aprecia ilustrações detalhistas ao mesmo tempo que monumentais; gosta de contos, dramas humanos, tipos marginalizados e análises perspicazes sobre a vida na sociedade moderna, Nova York: A Vida na Grande Cidade, é uma boa pedida. Não irá decepcionar ou gerar grandes desapontamentos, as qualidades encobrem os eventuais deslizes favorecendo enormemente a avaliação geral do título. Porém quem prefere trabalhos com roteiros densos, diálogos afiados e reflexões ácidas não é o investimento mais aconselhável.

RESENHA: O Silmarillion


Lançado 4 anos após o fenecimento do meado mais frágil e mortal do criador do universo mais rico e épico que se tem notícia, O Silmarillion é um condensado de manuscritos, rascunhos e contos elaborados por J. R. R. Tolkien (antes mesmo de se empenhar em materializar a sua obra de maior destaque, a Saga do Um Anel, O Senhor dos Anéis), sobre os primórdios da vasta mitologia que viria apresentar e encantar gerações anos a frente. Segundo o seu filho, Christopher Tolkien, os primeiros registros datam de 1917, mas que não ficaram incólumes, inalterados conforme o passar das décadas e a consagração dos livros lançados posteriormente, eram tratados por seu criador como obra em andamento e em constante expansão que continuava a ser alimentada mesmo nos anos finais de sua aparência terrena.

Como dito, a proposta desses escritos é a de relatar o gênesis do universo fantástico da Terra-média elaborado por Tolkien na saga do anel, bem ao estilo narrado no cânone bíblico, ainda que nem tão volumoso e evidentemente com adaptações a mitologia desenvolvida. Não se trata de uma mera reprodução da biblioteca judaico-cristã onde se tenta espelhar a estrutura, a hierarquia das divindades, apenas substituindo papeis por cópias genéricas adaptadas aos mitos Tolkienianos. Há algumas semelhanças e o tom da narrativa é próximo, positiva e negativamente, mas segue caminhos próprios, propõe ideias novas, há espaço para a infinita capacidade criadora do deus das letras britânicas.

Conhecemos a formação do planeta que abriga a Terra-média por meio da divindade máxima, “Ilúvatar”, que se utiliza de suas primeiras criações, “os Ainur”, posteriormente “os Valar”, para a elaboração de uma obra conjunta, uma sinfonia, cujo significado é do conhecimento somente do criador máximo, que dá vida ao planeta a ser habitado por elfos, anões, homens e pelos próprios Valar, que são encarregados de administrar o orbe conforme os desígnios do pai eterno.




Mostra-se a derrocada do Ainur Melkor para o lado sombrio em razão de sua cobiça desenfreada e o ódio que vem a desenvolver de seus irmãos e de todos os habitantes da terra-média, o estimulando a praticar toda sorte de perversidades para espalhar o terror e destruir todas as boas obras dos irmãos e seus subordinados.

É nos apresentado a primeira geração élfica e as profusas divisões estabelecidas na casta, motivadas pelas inclinações díspares de cada ramo familiar quanto à preferência de terrenos a fixar residência ou estilos de vida, além por rixas, discordâncias belicosas plantadas pelas mentiras do senhor da escuridão.

Conta-se a criação imprevista dos anões, os motivos por ser um povo com as habilidades, características e temperamento que lhe são típicas; o despontar dos primeiros homens, os desentendimentos das raças uma com as outras, com os Valar; as grandes batalhas entre as tropas de Melkor e os exércitos dos Primogênitos e Sucessores que marcaram as primeiras eras da Terra-média.




Não é uma leitura “O-“, ou seja, compatível com todos os tipos de leitores aumentando a chance de estrondoso sucesso editorial, em termos de vendas, claro, embora não se esteja falando de um fracasso. Dificilmente essa obra teria conquistado popularidade e retorno financeiro se fosse lançada antes do megassucesso do Senhor dos Anéis. Não à toa, a maioria dos críticos e dos fãs da mitologia recomenda que o volume seja apreciado por último, depois de se familiarizar com o universo de Tolkien lendo as obras antecessoras como O Hobbit e a própria saga do anel. No entanto, deve-se dizer que não é impossível ser cativado pela série iniciando pela leitura do encardenado em questão, pois contém muitas das virtudes do escritor. Há momentos marcantes, há a típica originalidade de Tolkien, há situações particulares e muito bem desenvolvidas. Há pujança criativa, ideias e conceitos bem interessantes que podem, sim, ser um bom cartão de visitas e um chamariz para novos adeptos ao enorme fandom instalado em torno da saga mítica.

Mas exigi paciência que muitos podem não ter, especialmente se não for um letrado nesse universo, que naturalmente absorve tudo com ar de curiosidade e fascínio; porque, além de tudo, de conter as qualidades de uma boa estória, é uma excelente expansão do universo que, tirante uma e outra incongruência, harmoniza-se ao que foi primeiramente estabelecido.

É difícil, por exemplo, se apegar, afeiçoar-se a determinados personagens devido às descrições extremamente econômicas (inusitado por se tratar de um escritor conhecido por esmiuçar, ao longo de páginas, ínfimos detalhes para que o leitor consiga se inserir no ambiente fantástico somente mensurado por sua imaginação prodigiosa) que marcam a narrativa quanto a semblantes, adornos e detalhamento de personalidades, salvo algumas exceções que melhoram a qualidade do texto. Igualmente difícil é conseguir se manter integralmente a par dos acontecimentos e dos detalhes de determinadas ações perpetradas por algumas figuras tamanho a quantidade de personagens (e pensar que é uma das marcas exaltadas nas Crônicas de Gelo e Fogo, fenômeno bem posterior a esta publicação, mas é merecedora de louvor por fazer uma execução mais exitosa nesse quesito) lugares, edificações, raças, árvores genealógicas etc. Complica ainda o fato do autor se utilizar de um idioma que desenvolveu para representar a língua dos elfos no ato de nomear personagens e lugares, sendo alguns de fácil memorização devido a sonoridade e grafia atraente que carregam, mas há tantos outros que não conseguem gerar o mesmo efeito.





A solução forçosa é identificar os papéis de maior destaque e tentar se apegar a eles, pois os principais eventos, por lógica, passarão sob os seus pés e, assim, se contentar em adquirir uma noção do que ocorre em termos macros no roteiro, mas resignando-se com a constatação de que terá que deixar um universo de detalhes a margem de seu conhecimento.

 Caso queira total assimilação, serão necessárias novas e novas releituras e apoio no glossário embutido no volume.

Em alguns momentos, você vai se lembrar da leitura da parte “jurídica” da bíblia, o Levítico e o livro de Números, ao acompanhar uma exposição maçante de nomes, objetos e localidades que lhe dizem pouco respeito e sabe que nem adianta tentar se esforçar porque jamais se lembrará de tantas informações.





Mas ao considerar a proposta, o objetivo imposto desses conjuntos de relatos, torna-se   compreensível o estilo econômico e profuso quanto a abrangência de nomes, o que ameniza o dissabor de se submeter a trechos tão enfadonhos.

Criar eventos mitológicos que remetem o nascimento da vida em seu estágio mais elementar até um período determinado anteriormente, muito avançado no tempo, exigi uma objetividade que de outro modo tornaria o projeto impraticável; ganharia a dimensão de uma bíblia. E talvez até fosse intenção de Tolkien escrever algo tão abrangente quanto, pois, como dito anteriormente, mantinha-se debruçado nesse material em seus últimos anos de mortalidade, mas certamente, prevendo a magnitude indigesta de tal tarefa, cuidou em desenvolver uma linha de pensamento que contemplasse a lacuna que se estendia da primeira até o começo da terceira era de modo a conseguir idealizar a completude de seu universo ainda em vida, caso contrário, se optasse pelo estilo minucioso que marcou sua escrita, jamais conseguiria fazê-lo e talvez seus ensaios jamais fossem publicados. Tal proposta seria impossível de outra maneira. Nem mesmo a bíblia pôde ser concebida integralmente durante a breve existência de uma mísera alma. Foi uma obra coletiva que se estendeu por séculos.

Como citado, a compilação tem os seus méritos que impedem de ser classificada como o “raspar de tacho” para angariar uns trocados a mais ao espremer uma mina de ouro fartamente explorada, acusação recorrente quando se publica manuscritos e rascunhos de excepcionalidades literárias, mas que pouco agregam ao conjunto acabado pelo autor.





O Silmarillion tem uma bela amostra da inventividade extraordinária de Tolkien. A formação do planeta é uma grande ode a nobre arte da música. É uma boa sacada porque se a morte, a antivida, a ausência de vida pode ser representada pelo nada, o vazio, o silêncio absoluto, a primeira antítese desse estado de coisa seria o som, um dos sinais de organicidade.

Como não se inspirar com a ideia de que o mundo em sua fase germinal era iluminado por duas árvores do alto de uma montanha, que poderia representar muito bem o Olimpo, que irradiavam brilho único e inigualável cuja intensidade e esmaecimento era proporcional ao ciclo iniciado ou encerrado de cada uma, ocasionando a situação do crepúsculo quando o findar da emanação de uma se encontrava com o reinício do brilho intenso da outra? E que o sol e a lua tiveram que ser criados para substituí-las em razão do obscurantismo de Melkor?

Não me lembro de ter visto em outra mitologia um dragão cuja característica mais marcante não seja a de soltar raivosamente fogo pela boca, mas sim, igual ao seu dono, tenha predileção em destroçar internamente seus adversários, humilhando-os, se valendo do poder nefasto de seus olhos.





Outro grande valor a ser apreciado na obra é a capacidade de Tolkien de transmitir verossimilhança a conduta migratória e ao comportamento dos povos da Terra-média semelhando-os com os povos de nossa realidade. Em vários trechos parece-se que se ler um livro de história, um ensaio antropológico sobre a formação de civilizações. A vastíssima cosmovisão do autor abarca todas as possibilidades conhecidas que expliquem o porquê de determinadas nações e etnias terem resolvido se instalar em determinados lugares em detrimento de outros, porque uma família acaba se tornando rival de outra, porque guerras acontecem; como se estabelece alianças etc.

Há sem dúvida momentos de heroísmo, mas com exceção de Ilúvatar e, os poderosos e imortais Valar, poucos ficam livre da tragédia podendo a qualquer momento tombar nas mãos dos inimigos, sofrerem uma terrível traição ou simplesmente perecerem com o passar inexorável do tempo, independente da grandiosidade de seus feitos páginas atrás, o que confere uma imprevisibilidade interessante à narrativa (novamente se antecipando a obra de George R. R. Martin, mas dessa vez com aplicação igualmente exitosa), além de acrescentar peso ao núcleo maléfico que passa a ser visto como um oponente digno de despertar temor, raiva, indignação, que certamente irá engrandecer o feito de um eventual herói que consiga abatê-lo em combate. 

Melkor e suas tropas, por sinal, também não ficam livres da fatalidade e nem são imunes a sentimentos mundanos como o medo.





Esse ciclo de apogeu e derrocada, de perda e ganho inesperados, injeta humanidade até mesmo no mais fantástico dos seres, por consequência aproximando o leitor dos personagens o fazendo enxergar o conflito como algo crível por mais improvável que seja; adiciona detalhes muito próprios a biografia de cada partícipe do grandioso épico, dando personalidade a trajetória de inúmeros desses atores, fato que faz com se louve sempre o espantoso poder criativo de Tolkien, que parece ter imaginação inesgotável.

O mal encarnado por Melkor é muito bem desenvolvido, talvez seja o personagem que mais ganhou densidade de Tolkien nesses relatos. Aqui descobrimos em detalhe o modus operandi de sua vilania e toda a sua astúcia. Como ser que se locupleta com o mal, não faria sentido caracterizá-lo apenas como um genocida truculento que mata sem hesitar, sem um pensamento refinado onde perceba oportunidades de gerar mais estragos no inimigo, ampliando, desse modo, sua diversão sórdida, ao optar em adiar o inevitável fim de sua vítima. O mais adequado é retratá-lo como uma entidade que prefere causar dor emocional a física, escravizando os adversários, corrompendo-os, os obrigando a assistir a ruína da própria família, forçando-os a trair seus amigos e familiares, os obrigando a preferir a morte a continuar rastejando a existência dolorosa. E é exatamente esse tipo de perversidade que mais  submerge nas ações do Senhor do Escuro.

Destaco o peso que é dado as nocividades da mentira ao longo da narração, da descrição dos males que causam afligindo por eras os povos da Terra-média. Assim como o demônio bíblico, Melkor é o pai da mentira e é responsável pelas principais discórdias entre elfos, homens, anões e Valar, o que explica boa parte das divisões, rixas, insurreições cujas consequências reverberam ao longo das eras. Nesse relato, adquiri-se a noção do quanto se subestima o poder e os estragos de uma calúnia na construção da identidade de um povo.





Aliás, esse não é o único paralelo que se pode fazer com a bíblia. Além de tom, do ser onipresente, da divisão bem e mal representada por núcleos bem definidos e oriundos de uma mesma raiz, o mais poderosos dos Valar, depois de Melkor, Manwë, pode ser considerado o Jesus Cristo da Terra-média já que é um dos filhos do Todo Poderoso e responsável por chefiar o conselho de administração dos Valar para gerir a grande obra erigida pelo pai celeste. Semelhante a bíblia, aqui, tanto homens como elfos são castigados pela rebeldia, influenciados pelas mentiras do Senhor da Escuridão. Os Valar, irados com as sublevações, chegam a expulsá-los da terra sagrada os proibindo de retornar e até destruir, com o auxílio de Ilúvatar, uma ilha paradisíaca ofertada como presente pelos bons serviços prestados por uma das linhagens do Homem. Sem dúvida, passagens que evocam o Éden e o grande cataclisma diluviano. Há também o paralelo de que, se no texto bíblico, vivemos esse período de aflições com o Homem se autogovernando e sendo governado pelo pai da mentira como forma de punição e de comprovação do ditame de que a carne terrena não pode caminhar com os seus próprios passos, o mesmo ocorre na mitologia Tolkieniana, sendo um dos motivos dos Valar se manterem tão omissos e permitir a contínua expansão da escuridão representada por Melkor.

É para se refletir se essas semelhanças são apenas frutos de inspiração que os escritos bíblicos proporcionaram a Tolkien ou se é uma afirmação do autor sobre a natureza rebelde e dúbia da nossa espécie.


Aponto o grande trabalho desempenhado por Christopher Tolkien por conseguir reunir a pilha de material inédito e inacabado deixado pelo pai e traçar uma linha narrativa cronológica com início, meio e fim que apresente satisfatória coesão interna. Além de elaborar um glossário, um apêndice e dispor, para auxiliar o leitor na tarefa, por vezes exaustiva, de se orientar nesse universo tão denso, mapas do mundo da Terra-média ao longo das páginas.




Porém achei desnecessário e prejudicial, a quem não leu a Saga do Um Anel e tenha despertado a vontade de consumi-la, a inclusão do resumo dos eventos da terceira era que revela o desfecho da saga e suas principais ocorrências. Como é muito improvável que alguém se aventure a ler esses relatos sem o conhecimento de que são eventos anteriores a terceira era, bastava ter encerrado o volume deixando subtendido que os acontecimentos sucessivos desse ponto em diante seriam os eventos narrados em O Hobbit e no Senhor dos Anéis.

Como consideração final, pontuo que esse compilado não é uma obra perfeita (pois o próprio Christopher admite que o texto apresenta incongruências em relação ao macrouniverso desenvolvido, mas que são pontuais e que se merece o desconto em razão do gigantismo monumental erigido pelo pai que morreu ainda se dedicando no apuro desses textos) e nem se trata do melhor de Tolkien, mas é uma livro que soma, não denigre o épico consagrado e tem grandes virtudes.

É uma leitura recomendável.

Cairia bem um remake deste clássico do Kubrick

Remake”, pra quem não sabe, é um jargão utilizado na comunidade cinéfila para obras que fazem uma nova versão de um trabalho anterior consagrado por crítica e público, embora não seja regra, imortalizando-se no imaginário popular, mas que caíra em esquecimento do grande público com o passar de décadas ou por ter se tornado antiquado ao estilo de linguagem predominante na contemporaneidade.

Como se trata de longas que encantaram gerações e construíram uma “marca” atrativa comercialmente, muitos artistas, influenciados nos seus anos de formação por estes longas, se sentem compelidos a embarcar em projetos que resgatem os valores dos clássicos replicando o fascínio despertado na juventude no público mais jovem ao revigorar, em estética e linguagem, os conceitos primordiais que comportam, os atualizando para ser um produto palatável a geração mais nova ao mesmo tempo em que busca respeitar os fãs da primeira versão, e o próprio trabalho original, preservando a essência que o caracteriza; e muitos estúdios de cinema, necessitando de sucessos instantâneos para permanecerem no azul, veem quase como certo retorno garantido promover uma reedição de um ícone com uma base de admiradores, portanto, de potenciais consumidores, já instalados (provavelmente envelhecidos, que farão marketing espontâneo aos seus descendentes para persuadi-los a prestigiarem os mitos que os felicitaram quando mais jovens), independente se for bem ou não recebido pelo público e crítica, pois será rentável só por despertar curiosidade.

Nos anos dourados de Hollywood, havia espaço para engendrar um projeto de revitalização de uma excepcionalidade cinematográfica, em seu tempo, que comportasse o idealismo dos verdadeiros artistas devotos à missão de inspirar e elevar espíritos por meio de sua arte, fazendo jus a obra que se baseiam, e o objetivo puramente pecuniário das produtoras. Daí, veio à tona excelentes adaptações como: “Ben Hur”, “Scar Face” e “A Mosca”.



Contudo, com a cobiça dos estúdios crescendo proporcionalmente ao desmilinguir de talentos ou oportunidades essas novas versões passaram a ser vistas com desconfiança, pois ficara nítido o pragmatismo insensível dos realizadores que visavam somente o lucro fácil e imediato, indiferentes se apresentavam produção minimamente digna perante a grandeza do clássico refilmado. Nisto resultou-se projetos sofríveis como: “Footloose”, “Vingador do Futuro” e “Psicose”.

A frequência desses insucessos, desses “insultos”, estigmatizaram o termo “remake” como sinônimo de oportunismo rasteiro e uma afronta aos fãs das mitologias alvos de especulações na indústria cinematográfica quanto a possíveis atualizações. Sempre que levantado à hipótese de uma refilmagem surge críticas na qual condena a falta de originalidade, a covardia dos estúdios em investir em novas franquias sem se valer da popularidade dos clássicos do passado que, de tão especiais, resistem ao passar do tempo preservando a genialidade e, na opinião dos admiradores, por isso, não necessitam de refilmagens e merecem ficar onde estão: em paz, intocáveis, ostentando a gloriosa imortalidade.

É verdade que existem clássicos que resistem bem à passagem do tempo e continuam agradáveis de assistir mesmos nos dias que seguem, porém há outros que cairia bem ajustes de linguagem ou de aprumo técnico, incrementos estes com capacidade de engrandecer ainda mais a estória. Por isso, sem dúvida, é um grande desserviço que as produtoras fazem ao banalizar o uso do recurso do “remake”, que pode sim ser saudável a uma produção consagrada por mais cultuada que seja e prestar um grande serviço à indústria ao reeditar um sucesso já esquecido, desde que se tenha o comprometimento de levar o trabalho a sério e entregar nas mãos de pessoas talentosas dispostas a oferecer o seu melhor.



Um desses casos que acho que valeria a pena investir em uma nova versão é o clássico “Dr. Strangelove” ou “Dr. Fantástico”, no Brasil, do aclamado diretor Stanley Kubrick, pai de obras máximas como “Laranja mecânica, “2001: uma odisseia no Espaço”, “ O Iluminado”, “Nascido para matar” e tantos outros.

A trama de 1963 é uma sátira carregada de humor negro sobre o conflito bélico nuclear-armamentista em fase de hostilidade calculada: guerra fria.

Um neurótico/perturbado general anticomunista ferrenho, Jack. D. Ripper (interpretado por Sterling Hayden), crer que os soviéticos tramam uma conspiração megalômana para se assenhorar em definitivo do planeta contaminando a água potável do mundo inteiro. Exasperado com o que considera indolência, miopia por parte de seus superiores políticos em dar cabo dos comunistas e vencer a guerra decide adotar uma postura extrema e até suicida: um ataque não autorizado a União Soviética.

Para driblar os entraves burocráticos de pôr em prática uma ação de tamanho impacto ao contexto geopolítico mundial e com consequências dramáticas a população como um todo se vale de um adendo jurídico, sancionado após o estabelecimento da divisão conflituosa das nações hegemônicas, idealizado em caso de revés catastrófico: Se Washington fosse alvo de um ataque nuclear impossibilitando que as forças políticas, no caso o presidente e seus imediatos, articulassem qualquer iniciativa, as forças armadas estariam autorizadas em revidar o ataque na mesma moeda.




Ripper entra em contato com a tripulação aérea encarregada de lançar os mísseis nucleares, que circulava no espaço aéreo mais como medida de prevenção do que crente de que algum dia receberia comando para um ataque dessa magnitude (descrença hilariamente retratada por Kubrick, diga-se), e mente descaradamente: Os EUA foram vítimas de um ataque brutal, o protocolo de retaliação deveria ser aplicado imediatamente.

Ciente que o embuste logo seria descoberto, o general resolve cortas todos os meios de comunicação da base que está instalado, convencer os soldados que protegiam a base de que a pátria sofreu uma invasão comunista e de que os inimigos se utilizariam da artimanha de se vestirem como soldados americanos para tentar iludi-los e, assim, dominá-los com mais facilidade. Era preciso que lutassem, repelissem os invasores, resistissem até a última bala.

Estabelece-se 3 núcleos no filme: a do quartel isolado sob ataque com o capitão Mandrake (Petter Sellers) tentando convencer o coronel ensandecido a impedir o lançamento do míssil, a da tripulação do avião com a carga mortífera e do comitê de guerra que reúne o presidente e seu time de ministros e oficiais junto com o embaixador russo estudando formas de desbaratar o ataque ou minimizar os danos.

É notório que Kubrick decidiu trilhar o caminho da concisão e do tom mais contido ao invés do estilo épico e grandiloquente ao engajar-se a transformar o filme em uma comédia, normalmente mais curta em relação a outros gêneros, e provavelmente persuadido pelas limitações técnicas e orçamentárias da época (ter desembolsado U$$ 1 milhão só com o salário de Sellers, que encarnou 3 papéis no longa, deve ter contribuído para a escassez de recursos). Não que tenha sido uma má decisão ou que o resultado tenha sido insatisfatório. O filme é genial, divertido, inteligente, uma delícia para se assistir, mas dá margem para, usando-se da mesma premissa do enredo, construir uma narrativa que se debruce ou que se foque mais em outros aspectos que também pode resultar em uma experiência igualmente prazerosa.

O roteiro oferece ótimas possibilidades dramáticas, grandes momentos de tensão, de suspense ao estabelecer o conflito inusitado de norte-americanos lutando até a morte contra os companheiros de pátria.




No filme de 1963 a ação foi colocada totalmente de segundo plano, pelos motivos já citados, onde se vê a câmera enquadrando os soldados disparando contra a base em um take e, no seguinte, registrando os efeitos desse gesto já no interior da saleta onde se refugia o coronel rebelado. Ou seja, enquadramento, corta, efeitos especiais capengas estourando janelas e introduzindo fumaça no estúdio. Situação parecida com as tentativas de abater o avião com o material destrutivo.

Imagine o acréscimo interessante que os recursos visuais disponíveis hoje podem injetar nessa estória?

A ideia inicial de Kubrick era fazer um drama político sobre a guerra fria, o que não é nenhum absurdo com esse roteiro. Há crítica social ao retratar o lado doentio da perseguição aos comunistas, que resultou nos anos de Macartismo, há a iminência de um desastre planetário, disputas políticas, uma tripulação iludida fadada a tragédia, soldados iludidos matando companheiros de botina, a tentativa desesperada de um capitão de resgatar a lucidez de um louco.


Nas mãos de gente competente e com o investimento necessário, seria um remake que pagaria pra ver.