É praticamente consenso que Philip K. Dick (1928-1982) foi
uma das mentes mais brilhantes na ficção científica no século XX. Sua
capacidade criadora assombrava pela produtividade, autor de mais de 30 romances
(vários adaptados para o cinema, como Blade Runner e Minority Report) e dezenas de
contos (aliás, alguns deles adaptados ao formato de série, Electric Dreams, pelo canal de streaming da Amazon, com boa recepção de crítica), e por sempre trazer algo de
original, fora da curva. Como mortos se comunicando por meio de suas atividades
cerebrais mantidas em câmara de preservação, androides escravizados para fins
coloniais extraplanetários rebelando-se para ampliar o tempo de vida e mundo
distópico onde as forças do Eixo venceram a segunda guerra mundial. Seus livros
viraram um dos símbolos da cultura lisérgica em plena ascensão nos anos 60.
Mas é também consenso que tão particular, rara e inusitada
que sua poderosa imaginação era a sua vida. Extremamente recluso, portador de
agorafobia, paranoico, viciado em medicamentos, com relacionamentos instáveis,
convivendo com usuários de drogas, especialista em pregar peças em psicólogos e
emissor de declarações no mínimo inusitadas já no seu final de vida que
colocaram em dúvida a sua condição mental.
Sem dúvida, genialidade e exotismo atraentes o bastante para
se pensar em produzir uma biografia.
Carrère é escritor, ensaísta, roteirista e diretor de
cinema. Dirigiu filmes como O Bigode (La Moustache, 2005) baseado em livro de
sua autoria e publicou esta biografia ficcional em 1993, no seu país de origem,
França.
É importante não perder de vista essa expressão: “biografia
ficcional” ou “biografia romanceada”.
Não é um gênero tão difundido e pode pegar de surpresa o
leitor que espera encontrar um livro biográfico nos moldes clássicos.
Concentra-se em retratar a vida do biografado esmiuçando o
seu ponto de vista, suas reações, seu modo de pensar com base nos fatos
colhidos pelo que se tem disponível na imprensa da época e, principalmente,
pelo relato de pessoas que conviveram com Dick. Muitas das lacunas que a falta
de material confiável impossibilita de serem destrinchadas são preenchidas
pelas interpretações do próprio Carrére a partir de seu conhecimento sobre o
personagem e de sua experiência de vida.
Dá-se a impressão que se trata de um romance com um narrador
onisciente debruçado sobre um protagonista excêntrico onde esquadrinha sua
psique nos mínimos detalhes. Não há uso de fontes, sinalização de que
determinado fato ou declarações foram extraídas de um registro isento e ilibado
ou por depoimento da pessoa citada em uma entrevista de pesquisa. São raras as
vezes que deixa claro que fulana afirmou isso ou aquilo em entrevista em dia
tal e ano tal, simplesmente a frase é colocada sem cerimônia, como se fosse um típico
personagem de romance.
Por isso, o leitor que não se atentar que consome essa categoria
de biografia, até porque a edição da Aleph não escancara na capa ou na 4º capa
esse detalhe, pode achar muito estranho, pode desconfiar da qualidade do
trabalho de pesquisa por não se comprometer a expor o material utilizado para
elaborar o texto. Nem devo dizer que não há motivo para desconfiar, mas como se
trata de uma característica de formato resta torcer para que tenha havido
excelência quanto a esse aspecto fundamental.
Talvez optar por esse caminho heterodoxo para dissecar essa
figura tão complexa tenha sido a escolha mais viável, uma vez que a reclusão do
personagem central e as diversas pessoas autodestrutivas que o cercavam
provavelmente mostraram-se grandes entraves para colher bons registros sobre
determinados períodos de sua vida. Mas certamente explicar e tentar reproduzir
o modo de pensar dessa imaginação incrivelmente radiosa, profícua e conturbada ante
aos eventos que marcaram sua história não significa que tenha sido o caminho
mais fácil.
E nesse sentido é justo elogiar o trabalho de Carrère que
consegue, satisfatoriamente, passar ao leitor o porquê de Phil Dick executar
certas atitudes tidas como bizarras à maioria das pessoas, explicar as
habilidades de interação sociais pouco difundidas sob seu domínio, como as
usava e com qual finalidade; transmitir ao leitor a sua paranoia inesgotável, as
suas fontes de inspiração para escrever determinadas obras e o grau de desequilíbrio
que veio a alcançar nos seus anos finais. Também é exitoso, valendo-se de artifícios
dramáticos e de um bom time para
distribuir informações e eventos chaves, em gerar apreensão, tensão no leitor
sobre o que virá a seguir, especialmente no final do livro, mesmo para quem
tenha noção sobre como fora o fim de vida do renomado escritor.
Também destaco o rico vocabulário do cineasta que injeta
fluidez, precisão, harmonia, tornando a leitura, no que se refere à composição
de frases, agradável e sem dúvida isto se deve, em parte, na edição brasileira,
ao trabalho de tradução que nesse caso se deve a Daniel Lühmann.
Mas há problemas. Problemas que dificultam muito a vida do
leitor e prejudica na mesma proporção à qualidade da obra.
O mencionado estilo narrativo que privilegia o microcosmo
que Phil Dick estava inserido (seria, talvez, uma metalinguagem pelo fato da
vida reclusa do autor de Ubik?) em detrimento de um olhar mais panorâmico causa
a sensação incômoda de se estar perdido no tempo, de se deparar com uma linha
cronológica confusa, apesar do texto pontuar o ano específico em que a narração
se encontra, mas geralmente no início dos capítulos, e fornecer noções de linha
temporal ao citar eventos e pessoas históricas, como o Watergate.
Creio que para qualquer fã de uma personalidade admirável
seja atrativo ter ciência sobre a repercussão que seus feitos, no caso, obras,
geraram no público, na crítica, a época de lançamento ao ter contato com textos
analíticos, mesmo que fragmentados, ou depoimentos de pessoas célebres; relatos
vívidos de como a figura do escritor era vista pela vizinhança, de que tipo de
pai, filho e marido era. Neste volume é possível colher noção sobre esses
aspectos, mas sente-se a falta de exemplos mais concretos, de contato com o
mundo que o cercava, de um olhar externo. São raras as vezes que isso ocorre. O
leitor sente-se sufocado, preso a uma fórmula narrativa que se restringe ao
mundo paralelo e estranho que Dick habitava e por mais interessante que esse
universo possa se apresentar por vezes, a sensação é de que faria muito bem ao
texto respirar o ar puro do mundo ao redor.
As revistas que publicavam os contos de ficção do Dick
recebiam cartas dos leitores comentando sobre os seus textos? Sim? Mostre uma,
por favor. Qual era impressão de Ridley Scott sobre o livro que ele adaptava? O
que ele achou de Dick ao vê-lo pela primeira vez? O que o Dick achou do corte
bruto que viu da adaptação? O que seus editores achavam de seus escritos? Dê um
pouco de realidade. Confira elementos táteis da época que tenha relação com o
personagem, uma tira de jornal, uma crônica, uma observação espirituosa
publicada em colunas sociais, um ensaio.
Nada.
Muitas das tentativas de racionalizar as neuroses elencando
a série de ocorrências que influenciaram Philip a chegar a conclusões absurdas
se tornam cansativas, tal a constância que as neuroses acometiam Dick e pela
narração manter-se excessivamente presa no interior esquizofrênico do
biografado. Chega-se a um ponto de que a tentação de abandonar a leitura devido
ao tédio e o temor de ficar tão confuso e errático quanto o gênio da ficção
especulativa é quase invencível.
Acho que a maior mancada desse livro, para não dizer crime,
é a constatação de que Carrère resume, sem cerimônia alguma, vários livros e
contos do autor revelando detalhes cruciais de cada obra, os chamados spoilers.
Quem não leu toda a bibliografia de Philip K. Dick se verá em apuros. E não há
um alerta por parte do texto ou do editor. Jesus...
E os resumos são ruins. O que é positivo, mas
involuntariamente.
Resumir universos tão ricos e complexos em um parágrafo já é
uma tarefa inglória e quando se utiliza uma linguagem, por vezes, rebuscada, só
piora a situação. Dá-se uma ideia muito vaga sobre o que Dick escreveu, parece
que as sínteses foram escritas apressadamente, igual um resumo pedante de um
ginasial que leu apenas outro resumo na internet. Para quem não teve contato
com o texto citado é positivo por deixar em aberto à possibilidade de
surpreende-se quando for lê-lo. Mas ressalta-se que é um aspecto favorável derivado
de uma deficiência textual.
Até aqui, percebe-se que a edição da Aleph deixa a desejar.
Vamos começar pela capa.
É belíssima. O tom de rosa é atraente, chamativo. A fonte
utilizada é impactante, o design muito bem feito. Minha questão é quanto à
escolha do título e ilustração em termos de marketing.
A obra e o nome Phil K. Dick são famosos, mas a sua face, ao
menos no Brasil, creio, não. Então ao se colocar, em segundo plano, o seu
retrato e, pior ainda, o seu nome em uma linha fina, como subtítulo, “engolido”
por uma frase que nem é tão boa assim, não me parece a escolha mais
inteligente.
Ajudaria a minorar um dos pontos falhos citados quanto ao
texto colocar material de apoio no miolo do livro. Fotos, pôsteres,
caricaturas, imagens de objetos, das casas que morou, da rua, de manuscritos, de
autógrafos etc.
Novamente: nada. Nem uma mísera foto.
A imagem estilizada que foi escolhida para estampar as capas
não permitir distinguir detalhes do rosto de Phil Dick. É a primeira vez que li
uma biografia que tive que consultar o Sr. Google para me lembrar do rosto da personalidade
biografada. (A imagem acima está bem melhor do que a versão impressa que
tenho).
A conclusão é: se você ainda não teve a oportunidade de
conhecer a produção literária de Philip K. Dick essa biografia ficcional não é
o melhor caminho para começar a se familiarizar com o universo do escritor. Se
já consumiu tudo o que deveria ser consumido do mestre da ficção científica, é
provável que a leitura do volume acrescente algo, mas não me parece um livro
indispensável.
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