Esse encadernado lançado pelo selo da CIA das Letras, Quadrinhos
na CIA, é uma coletânea de quatro graphic
novels do pioneiro desse conceito, um dos primeiros quadrinhistas ilustres
da indústria de comics, do criador da
série The Spirit, o multipremiado
Will Eisner, que inclusive nomeia o principal prêmio do segmento nos EUA, o Eisner Award, que versam sobre o mesmo
tema: a vida na grande cidade. Mais especificamente: Nova York.
Apesar de ambientar as estórias no município de origem,
Eisner consegue, por meio do seu olhar arguto, de sua sensibilidade profunda e
rara, universalizar a temática dos relatos ao retratar hábitos, tipos e
situações características da vida em uma metrópole, sendo possível qualquer
pessoa que já tenha passado por tal experiência se identificar com várias de
suas descrições.
O volume é composto por numerosos microcontos intercalados por
enredos mais aprofundados, muito deles centrando-se sobre temas, situações,
pessoas que normalmente passam batido pelo olhar da multidão no ritmo frenético
da cidade grande, mas não pelos olhos atentos de alguém como Eisner, que parece
agradar-se muito ao assumir uma cadência díspar da maioria e se dedicar a contemplação,
ao estado de alerta para captar essas pequenas minúcias submersas pelas
necessidades prementes; de se comportar como um sagaz expectador da vida em
movimento. Aliás, na segunda metade do volume passa a assumir escancaradamente
essa posição ao se desenhar observando o público com uma caderneta e lápis na
mão.
São estórias que giram em torno de um microcosmo de pessoas
que interagem com um hidrante, por exemplo, que participam da acumulação do
lixo em um bueiro, que utilizam uma escadaria para socializar ou para
contribuir em uma brincadeira; sobre o universo de desejos e aflições que
ocupam a mente dos passageiros em um vagão lotado do metrô; sobre os
desencontros provocados pelo pandemônio da urbe; sobre pessoas solitárias, amarguradas,
a margem da socialização esperada em um espaço com tamanha concentração portentosa
de seres. Relatos envolvidos pelo humor irônico e pelo tom polidamente crítico
quanto às injustiças sedimentadas no cerne da ordenação social do olhar
inquieto e onisciente de Eisner.
Pelo estilo ágil de sua escrita e traço, lapidada por anos
ao desenhar tiras para jornais, o leitor rapidamente se vê testemunhando a
formação de um amplo mosaico que ao seu final concluirá uma dissecação
minuciosa sobre o modo de vida em uma metrópole populosa (partindo do começo do
século XX até o princípio dos anos 90) ao somar todos os fragmentos dispersos.
Técnica, seja por parte do autor ou por obra do trabalho editorial, que nesse
caso se mostrou tão eficiente ao estabelecer um panorama quanto a uma abordagem
generalista que se restringir-se a assuntos macros.
É curioso observar que, estando ciente do período histórico
em que se passam esses singelos contos (o princípio da superpopulação nas
cidades, a degradação de bairros, cortiços, conjuntos habitacionais; os meios
de transportes insuficientes, a proliferação de crimes, o cinza devorando
descontroladamente o verde por meio de construções nababescas e irregulares), é
quase inevitável sentir que na verdade se descreve uma cidade terceiro mundista
como São Paulo; e uma vez instaurada essa impressão vem a inquietadora
constatação do quão atrasados nós, moradores da periferia dos centros de poder
e pujança, estamos. Pois se muitas dessas situações de precariedade que marcaram
a época que o autor resgata, ou registra, ainda perduram nas grandes cidades do
planeta, muitas delas, neste século XXI, já não se encontram tão presentes no
cotidiano de seus habitantes, ao contrário do terceiro mundo que ainda não
apresenta perspectivas de, nem sequer a longo prazo, sanar esses problemas
devido a inércia não só da casta política, mas também da população.
O passado longínquo de Eisner continua sendo a realidade de
nossos dias.
As ilustrações são um desbunde visual tamanha a riqueza dos
detalhes que conferem nos ambientes, na paisagem, nos prédios, nas roupas, nas
expressões faciais, na linguagem corporal dos personagens. Percebe-se o impacto
das emoções intensas influenciando o modo de andar dos protagonistas, o peso e
a elasticidade das roupas, a passagem do tempo deteriorando fisicamente as pessoas.
São vários os impactos embasbacante de paisagens de páginas inteiras ou de
meias páginas proporcionados pela quantidade de informações a ser absorvidas.
Como os inúmeros objetos espalhados no entorno de uma linha de trem, as dezenas
de pessoas sobre uma calçada fazendo movimentos ou ações específicas; as
rachaduras nas calçadas, o lixo sendo arrastado pelo vento, os adornos
arquitetônicos dos vertiginosos edifícios. Sem contar a maestria do uso dos
objetos em cena para provocar transições de uma ação a outra sem necessitar de
novos ângulos e, consequentemente, mais papel. Novamente outro benefício
extraído dos longos anos produzindo tiras nos jornais.
O estilo enxuto e objetivo dessa técnica que se utiliza
muito da linguagem gestual, aliada à coloração preta e branca, transmite a
ideia de se acompanhar uma série de curtas-metragens do cinema mudo. Não foram raras
as vezes que me deparei pensando em Chaplin ou inserindo, mentalmente, uma
trilha sonora típica dessa época, dedos frenéticos no piano, durante a leitura.
Mas há circunstancias nesse estilo que incomodam.
Ocorre que a objetividade cirúrgica, por vezes, prejudica o desenvolvimento
do vínculo emocional dos personagens com determinados fatos ou objetos. A
elaboração sucinta, econômica, dessas conexões dificulta a compreensão da
importância de determinados eventos na vida dos protagonistas, pois parece
evidente que ficou faltando indícios, elementos que justifiquem determinadas
atitudes e que façam o leitor acreditar na trama que se desenvolve, que o faça
vê-la como crível ao invés de um enredo eivado de artificialismo, por mais que
se saiba da ocorrência dessas situações narradas dentro de nossa realidade e do
caráter plausível que carregam.
O paralelo que se pode traçar entre as melhores estórias,
onde o estilo funciona plenamente, e as piores, onde fracassa fragorosamente,
é: quando bem sucedido, Chaplin. Quando não, pequenos curtas metragens que remonta
aos primórdios dos estúdios Disney, tal a simploriedade. Dá-se a impressão que
se consome algo destinado ao público infantil.
A edição da CIA é belíssima, robusta, com uma capa
maravilhosamente colorida. Há bons textos de introdução como o de Neil Gaiman
(que por sinal, ando gostando mais de seus comentários sobre outras obras do
que propriamente de seus textos originais), além de conter artes finalizadas que
foram preteridas pelo autor.
Para quem gosta da linguagem de tiras de jornais, é fã de
Will Eisner, aprecia ilustrações detalhistas ao mesmo tempo que monumentais;
gosta de contos, dramas humanos, tipos marginalizados e análises perspicazes
sobre a vida na sociedade moderna, Nova
York: A Vida na Grande Cidade, é uma boa pedida. Não irá decepcionar ou
gerar grandes desapontamentos, as qualidades encobrem os eventuais deslizes
favorecendo enormemente a avaliação geral do título. Porém quem prefere
trabalhos com roteiros densos, diálogos afiados e reflexões ácidas não é o
investimento mais aconselhável.
Nenhum comentário:
Postar um comentário